quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

A Estrada VI

E tudo foi no seu perfeito seguimento
O reconstruir de todo o firmamento
Sei sentir em mim tudo o que existe
Que é o que a mim importa que exista
Tu entraste finalmente nessa porta
E sorriste
Disseste que o mundo não importa
E partiste

(perto do fim perto do fim
ouvem-se vozes mal ouvidas
sentem-se ferozes em mim
as tuas mãos arrefecidas)

Já não sinto a nostalgia do presente
O arrependimento do nada
Inundar a tua face parada
Junto à estrada sempre ausente
Deixar-me na berma calada
Este silêncio é um outro
Como um festejo rouco
À espera da festa ensaiada

Não sei quem te deu o meu olhar
Nem quem foi que te emprestou a minha mão
Eu não fui pois eu nunca estive
Onde sempre julguei estar
Mas tu ficaste como quem vem ao encontro
De um novo polegar entre a paisagem
E encontra em toda a boca a aragem
Do futuro que se aproxima de nós
Excessivamente

A tua cabeça sempre foi mais que pensamento
Sempre senti em ti o fervilhar amoroso
De pensar como quem constituísse matrimónio
Com a sabedoria e ficasse para sempre a pensar
Que a evolução era um conceito que se explica
Evoluindo a explicação e a evolução
Não para explicar a evolução e a explicação
Mas para transitar entre as mentiras que suprimem
A cor dos arcos íris que se assemelham
A fantasias irreais e que só vemos
Porque existem dedos para apontá-las
E eu não sei que mais consegues dar
Que essa voz perdida em ecos silenciosos
Que se esbatem nas cores que vêm da rua nocturna
Mas perfeitamente iluminada pelo calor
De luzes de candeeiros que se replicam
Uma dúzia de passos à vez
E toda a sua luz é a nossa noite
É a nossa negrura mais obscura
Tudo para além disto é a negação
De existência
Porque se eu te visse no escuro eu não sei
O que poderia deixar à luz dos acontecimentos
Mais que uma vontade não seria certamente
Mas iria pedir mais de mim do que aquilo que eu
Sempre trouxe nos bolsos
Ou nos maços de tabaco
E a única luz que eu posso ter para radiar
É a do isqueiro que nunca é sempre o mesmo
E que vai mudando à medida que se gasta
Ou se perde ou circula
Como propriedade dele mesmo

Adorava ter a coragem de ser eu
Como quando nos perguntam o nome
E nós dizemos com a certeza da verdade
Achando impossível e ridículo
Ter outro nome qualquer

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Ser e impossível

Como tu vieste a ser
Essa voz pura iluminada
Antes do amanhecer
Entre o vazio e o nada

Procuraste entre a porta
Encontrar vestígios ou pegadas
E encontraste a verdade morta
Estimaste o escudo e a estrada

O escuro nunca foi de facto
A alma que tu espelhavas
No suor no sorriso e no tacto
Hora em que tu mostravas

À luz acidentalmente a tua sombra
E ficaste plácida e imperecível
No rasto insólito e incrível
O deus morto pela sua obra

Não quero com isto te descobrir
Do manto negro invisível
Na negrura de todo o existir
Brandura do tecer passível
De um ser não ser e descobrir
O existir de um ser impossível

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

A Rua VII

O que fizeste para não seres vista
Quanto pagaste ao tempo para ele te ter
Deixado passar entre as horas
E visitar a perfeita corrente que liga
A sequência do que acontece
Para além dos olhares indiscretos
Que espreitam entre as brechas
Das nuvens
O que deste em troca desta arte
Vida repetida a cada toque que forma
Um arrasto no ar como uma caneta de luz
A pintar na transparência do teu olhar
A vitória do inconsequente
Como tornaste o teu mundo mais mágico
Que o meu que recriei de cinzas e passados
Mais que a vontade e o desejo soubeste
Impor como rainha do universo na tua mão
A direcção dos astros de cada ponto
Que se vêem com o cerrar de olhos
Com os quais tu dimensionas o que existe
Como passaste a barreira do pensável
Com essa calma de quem diz eu não sei nada
E absorves cada pedaço do que passa a teu lado
Constróis a razão do que se mexe e depois pensas
Com esse teu ar pensativo e abstraído
No tempo que demora a se formar
Cada criatura em união neste presente
Em que tu criatura única e irrepetível
Fazes de tua o que te rodeia um mero quadro
Que sem ti era a inpronuncíavel negação
Da existência

Não há nada que eu possa querer dizer
Quando tu mesma não sabes o que dizer
Sobre esta vida que se espalha a teus pés
E eu não encontro mais razões
Que o que o meu olhar me tem para dar

Não digas nem uma frase ao meu ouvido
Só a tua presença é o destruir imediato
Do meu sentido
A tua procura
É o perfeito equilíbrio da minha satisfação
Pois eu não quero ter de reconstruir o mundo
Depois da tua passagem

domingo, 9 de dezembro de 2007

A Estrada V

Procuro-te com o olhar
Depois da luz que ousa entrar pela porta
E num passo indesejado há luar
Que espreita pela janela
Que devia estar fechada

Dá-me o teu ritmo
A tua dança
A tua voz e a tua criança
O rasto do puro e íntimo
Que se desvanece na crença
De que o mundo é o fim último
E que a vida morre antes da esperança

Onde encontraremos a verdade
Que não procuramos sem ser com a vontade
Porque desejamos a ausência e o mistério
E naufragamos a cada pedaço do império
Que construímos no círculo que nos rodeia
E no círculo que somos e que deixa morrer
Pedaço triste pedaço de sabor que deixa arder
Cinza perpétua e unitária dos olhos de Pompeia

Assim te vejo caminhar atravessando aquela porta
Como se de uma parede se tratasse
E o teu reflexo vem de todo o lado e há transtorno
No teu olhar que reencontra o que não sentiu perder
E eu permaneço imóvel e indiferente à escuridão
Que se reúne como um grupo de amigos em meu redor
Calados e de olhos fechados para o céu
Como quem espera a oferenda açucarada
Da convivência elogiosa da recompensa

Eu ainda te sonho
Eu ainda te peço Entra por aí adentro
Por dentro
Deixa o que se passa iluminar o teu passo
No meu espaço
Ao mesmo espaço do compasso
Que rege o teu laço
E eu ainda te agradeço
Todo o volume intacto
De permanência no abstracto
Relacionamento de aguardar com impaciência
O relatar moroso e informal da tua tendência
Para seres fumo em mim
Para te tornares o rumo e o fim
Que se espalha como ar na janela aberta
E que só o vento soube amar na descoberta
De todas as suas virtudes

Agarra o meu braço
Eu espero porque sei o que se espera
E sei que o esperar é uma melodia
Que pode findar a qualquer toque que erre
A nossa concentração emocional

Sei perfeitamente qual é a tua morada
Estás presa entre as vidas e os futuros
Estás arrebatada pela sorte a outros fundos
Perdeste o sentido que te davas a ti e que não tinhas
Essa corajosa exuberância impotente
Ainda te chama ela entre as poeiras do caminho
Como uma rosa que olhas e não colhes
Ou foi definitivo este eclipse como uma morte
Que vem definitiva se mostrar inconclusiva

domingo, 2 de dezembro de 2007

A Rua VI

Batem-se palmas entre a gente
Para a gente que vagueia pelas ruas
Abres a boca e nada mudas
Tudo em si mesmo inteiro permanece
Mas algo se altera na profundidade
Que escapa ao olhar inesperado de quem olha
E a tua mão escapa atrás do teu vestido
E bate na minha como um incidente despido
De importância para o mundo

Mas todo o mundo aí se criou
Aí inesperadamente houve uma voz
Que passou a falar comigo baixinho
Como quem passeia comigo
E vai apontando as coisas que lá não estão
E me fala de ti como se fosses
Algo mais importante que tudo aquilo
Que se pode ver em toda a vida

Deixei de me preocupar com os passos
Que damos entre os restos de expectativas
Nascidas em nós vítimas humanas
Das violações do imaginário
Um começo próprio de um começo
Como tantos começos da nossa vida
Passamos a vida a começar
Porque nunca vai existir um fim
Que valha mais que um bom começo

Mistério chave dos universos
Chave das estrelas e dos mitos
Dos passos e dos cantos
Das vozes e da palavra-acção
Que rouba e dá e foge
Que existe sem mais nada em si só
E é ouvida em qualquer sombra
Ou vazio do tempo e do espaço
O mistério é a chave do corpo
Da mente e do espírito
Do destino e do amor
E do sexo e da esperança
Da vontade e de cada passo de cada dança
Mistério do começo e do fim
Do nevoeiro e da espera vazia
Da tentação e da alegria
Mistério do número e do andar
Do som da campainha
E de todas as formas pra lá da porta
E de todas as vestes que se encobrem
De luz e de falta dela

Maravilha que compõe o mundo
O tentar aceder à lógica aleatória
Da fonte da vida e do existir
Deslumbramento dos sentidos
Veículos irrepetíveis e únicos
“Perder um medo
Não é nunca ter tido esse medo”
E dançamos e procuramos
O fim perfeito o fim
Só aquele em que acabamos de cair
E não esperávamos
Temos tantos fins
Assistimos a tantos começos
E só este decisivo final
Este misterioso final
Que não compreendemos
E o que conhecemos
Vem depois de tudo

Aplauso impresso no mistério
Que compõe todo o processo
Do mundo

Vitória e perda
Da memória destacada pela borda
Da vida

Vastidão imperecível
Recomeço e correcção
Fim inesperado e detestável
Ilusão imperiosa ilusão
Do ser

Coercível perecer
Palavra do fim
Adormecer

Cair do pano
Negrura silenciosa
E dura

Amanhecer pleno
Aurora esplendorosa
E pura

São declamados pelos teus lábios
Nestes sonho irreais e nunca tidos
Engane-se quem pensa que os sábios
Se fazem entender quando são lidos
E as palavras nunca servem a verdade
Nem nunca condizem com os olhos
São vazios de acção e de sonhos
São o fim que não encontra finalidade

Por isso poetiso
Porque há um vazio impreenchível
Porque há uma acção exequível
Que procura a sua forma entre os gestos
E as palavras não são actos, são gostos
São pactos de oposto a oposto
Deixam entre si um grande fosso
De fim e de começo e no teu rosto
São silêncios de perda e de destroço.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

A Estrada IV

Este é o teatro sem gestos
O teatro da memória sem factos
A retirada oblíqua da luz
Para o não cair do pano
Mas sim para o cair da escuridão
Que é também um pano

Esta é a poesia atroz
Que se demarca no nosso intento
De escrever o mundo
Como se este tivesse parado
E nós o fotografassemos
Sem espreitar pela objectiva
E no rolo ficasse gravada
A intenção

Este é o caminho que seguimos
Na nossa mente
Para chegar à recordação

Esta é a corda no poço

E nesta estrada vamos
Vamos como quem vai para algum lado
De onde não há recordação de termos partido
E ainda menos a intenção de chegar

A Rua V

Há um vazio que se alastra
Um nada que mais nada se torna
No passar de cada segundo
Tão doce esta imagem de ti
Esta boca parada a olhar para o nada
Que se alastra
O pensamento quieto
De um corpo inquieto
E as recordações a fervilhar
Como quem tenta ouvir atentamente
O que se diz na mesa ao lado
Mas aqui não há mesa nenhuma ao lado
Nem uma mesa tenho à minha frente
Só existe esta cadeira onde eu sou
E me encontro meio erguido entre o ar
Que passa nos meus ouvidos e parece trazer
Memórias de discursos e batalhas
Que se alastram e que se alimentam
Daquilo que eu deixei para trás de mim
Sem me lembrar que nunca nada desaparece
E agora se transformou no que não esperava
Que se transformasse

Tu saíste daqui de repente sem notar
Que eu estava contigo e por ti
E deixas-te-me a boiar nesta aragem
Que corre agora para me levar
À outra margem
Onde tu estás eu sei que estás
Eu sei para onde foste mas não quero
Perseguir-te como ainda hoje a constelação
Do escorpião persegue Oríon.

Parei por entre a gente e fiquei
Surpreendido como nada ocorre
No mundo, tudo é estático
Ninguém mexe nem um dedo
E no entanto tudo parece modificar-se
A um ritmo que não explica bem porquê
Nem parece ter um compasso
Mas os deuses desta rua sabem
Trautear nas suas palavras
Que não têm som aos nossos ouvidos
Mas que as sentimos em vagas de tristeza
E alegria que oferecemos ao momento

Distancia-te do que vês
É ilusão
Nesta rua não ficaram os porquês
Nenhum carteiro os deixou
Aceita a tua existência
É o teu cartão de visita nesta instância
Que se sobrepõe a tudo quanto é
Ou existe para além do que pensamos
Ser a verdadeira identidade deste mundo
São questões já decoradas dos antigos
Que sentiram que não valia a pena
Encontrar além das cortinas a janela
Que no fundo sempre teve fechada para a rua
Onde por vezes um ou outro ousou espreitar
Como uma criança com o medo do sol
Mas fechou-a rapidamente porque a luz
Não deixou perceber muito bem o que iluminava
E nunca ninguém abriu a janela
Por isso o nosso reflexo sempre pareceu maior
Que o que estava para além do vidro

E aqui dentro nesta casa
Brincamos ainda
Crianças que apelidam as cores
Que tocam as formas
E aos cheiros reagem com expressões
Que nunca viram no seu rosto
Mas imaginam que são uma outra coisa
Um centro gravitacional à roda do qual
Tudo o resto existe e que sem eles
O caos se imporia
Como um homícidio de honra.

Nunca se confia numa janela
Ela só sabe cegar os nossos passos
Antes a porta utilizemos para espreitar
Com o próprio corpo
O que se passa no mundo
Ficar distante é arriscado
Tem cuidado
Quando voltares
A abrir uma cortina
E nunca sejas suicida ao ponto
De pensar em abrir a janela
Sai pela porta e desce
Não sejas cobarde
Vivendo o que não sentiste

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A Rua IV

Mas a multiplicidade das ruas
Não me deixou ver além
Das paredes que se encolhem a cada esquina
Foi tão simples quanto isso este olhar
Desabrochado à água pura e límpida
Que embatia em cada carro que veloz
Passa sem deixar opinião

«Tu estás certa e eu estou errado
Vou sentir a tua falta agora que foste
Embora
» foi assim que ele deixou
Marcada nesta música atroz
A beleza do passado que transtorna
O presente delicado e não existe
Força maior que a nossa vontade
De existir nesse passado que presente
Seria o nosso quadro mais dourado
Memórias para que vos quero
Vida para que te vivo
Se espero só encontrar o que já foi
A cada passo que dou em ti
E sei perdida de mim a repetição
E cheiro nos meus dedos a certeza
De que nada se repete e tudo é
Único e verdadeiro quando acontece
E não há força neste universo
Capaz de mudar isso de nós

É pena
Porque é ilógico
Constrangedoramente ilógico
Nunca conseguimos conceber o fim
Tudo para nós anda à roda
De nós
E todo o fim é a atroz
Voz da irrespirável ausência
De nós
Perfeita consciência
De que o mundo se abstrai
E nós somos sozinhos o universo
Em que nunca caminhamos

Mas não te importes com isso
Há de novo no ar uma outra soma
Que se soma à tua expectativa
De existir e de ter forma
De fugir por entre a intempérie
O mundo que se aporta à nossa rua
O mundo que se quis por entre o espaço
Vazio e que erigiu aqui um novo tempo
Que se conta desde o zero como todos
Os tempos que marcam espaços novos
Ela estava em pé e chovia
Havia coisas que não se entendia
Mas agora que revistas são perfeitas
Doses de arte embelezadas na memória
E na forma como gravamos o que acontece
Os nossos olhos nunca vêem nada
Mas são janelas importantes para nós
Sendo mais o interior que o exterior
Agora percebo, o mundo lá fora não é
O mundo só existe quando existimos
E árvores caem desgarradas na floresta
E não fazem nem um som

São árvores que não são árvores
Até serem amadas por alguém
E alguém adormecer com a sua imagem
Tornando-as aí o signo que descreve
Árvore na sua linguagem
Nós somos herméticos
Fechados nas gabardines porque a chuva molha
Porque ouvimos uma vez que ela molhava
E nunca mais corremos pelas ruas
A ouvir realmente o seu som e a saber que molha
Não com o pensamento
Mas connosco propriamente no momento
Em que ela cai no nosso rosto e nos descreve
O nosso ser vivo e total
Como ouço sussurrar daquela estante
Onde a Sophia soube pôr em cada verso
Cada gota d’água do seu universo

Então agarra a minha mão neste momento
Não há nada para além do que sentimos
E a vida encaixa-se perfeita neste vasto
Labirinto de ruas habitadas em casas e caixotes
E tudo funciona na perfeição que funciona
Não interessa o que pensamos sobre as coisas
As coisas são como esta chuva que nos molha
E as nuvens são deuses dessa chuva
Que cai e sabe porquê
E não interessam esses ventos que nos chamam
Perguntando a direcção que tomamos:
Frente ao desconhecido caminhamos
À procura da razão que nunca amamos

A rua e esta chuva são presentes
Que não devemos rejeitar dizendo não
Mas sim sem um som deixar acontecer
A viagem mais longa de que há memória
Quando toda a gente esperava que ficássemos
Todos fechados em casa

sábado, 17 de novembro de 2007

A Estrada III

Já vos caláveis
Arremessadores de palavras
Tansversais

A minha voz é muda
Mas não muda
E é sempre o mesmo silêncio
Constrangedor
Dos ventos que não sopram

Antes de aqui estarmos a harmonia
Era outra era vasta e gratuita
Agora está cercada pelas linhas racionais
De quem comprou com as palavras
Todo o mundo que antigamente
Se estendia e todo o ser o entendia
Na sua corrente alucinante de imagens
E que na noite se cobria simplesmente
Apagando toda a luz excepto a lua
Agora brilham altos os painéis
E as lojas estão abertas
As necessidades expandem-se a anéis
Que não governam nenhum sentimento
E que o amor não passa
De uma triste e dura carapaça
Que se veste e se exibe em qualquer praça

Tudo passa como tudo passa
E pouco fica, só uma pequena forma
Que mal se distingue e se assemelha
No conjunto que une tudo e tudo torna
Diferente e irreconhecível
Avançamos no sentido que não prevemos
Deixamo-nos ir por onde não queremos
Somos tomados pelo tempo que não deixa
Antever mais que este presente que se mostra
A cada passo que damos e não é nada
Inteligente pensar que ele é pensado
E que transforma alguma coisa além dos olhos
Este quadro é gigante e nós só vemos
Aquilo que o imediato nos deixa descobrir
Há milhares de outros pontos que não estão
Disponíveis nunca durante tudo o que vivemos
Por isso vivemos, por isso caminhamos sem saber
O que deixamos propriamente que seja
Válido e importante à humanidade
Mas pensando calmamente e sem verdades
Conseguimos oferecer a nossa vida
Ao mais alto efeito que é viver
E fazer de cada vontade um gesto
Que faz mover os ventos de amanhã

Amanhã de manhã já esta rua cá não está
Isso é a estrada que se fez deste caminho
Que é o de ir e descobrir sem partir
Uma rua sem raízes e sem mais
Recordações que recordar que lá passamos
Mas a rua que ficou no pensamento
Não é prevista não é vista só sonhada
Cada estrada pode ser sem nós sabermos
A rua pela qual tanto ansiamos
Mas se vamos prosseguir pelo sonho
Uma outra rua
Então que se deixe esta aberta a outros passos
Que por aqui deixem de ser passos
Como ondas que decidem
Rebentar na areia e voltar a ser o mar
Que aos nossos olhos se confunde com o céu

Não digas nada nem te queixes
É já tarde e já deixamos de ali estar
Tantas ruas já tomamos por estrada
Sem sequer pensar
Que podia ser a nossa rua
Como amnésicos seres que se esquecem
De quem são
E fazem de cada rua um labirinto
Vivo que a cada passo se tranforma
E nunca é igual duas vezes
Mas ali eles nasceram
E viveram toda uma vidaSem saber nem se lembrarem
Nem saberem porquê
E são desconhecidas essas ruas
Sendo estradas que só levam a elas mesmas

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A Estrada II

Sempre quis olhar para ti de frente
E dizer-te alguma coisa de interessante
Parecer o mundo e a atmosfera de um filme
Rodear-nos como uma nuvem de palavras
Que qualquer espectador presta atenção
E sentir os olhos do mundo em nós
A tentar escutar o que dizemos
E a sentir este aroma de café na sua boca

Estamos de passagem afinal
E tudo isto demora tão pouco
Que se abre em nós a expectativa
E fecha-se logo de seguida

Calma, tem calma meu amor
O som deste piano é efémero
Mas algo nos sussurra no silêncio
Que todo quanto ama é eterno

Assim, devagarinho, procuramos dizer
A nós mesmos, entredentes
Entre as vestes e as posses captadas
Que algo que nos suporta é maior
Que a força que mantemos nas pernas
E nos mantém na verticalidade
Olhando o horizonte como se este
Também traçasse uma linha vertical
Que liga a nossa estrada ao céu

E a nossa estrada escureceu
Nós ficamos a caminhar
Depois deste alcance de vitórias
Nas nossas palavras e olhares
Que estendemos um ao outro
Em amizade
E felizmente há um lugar ao fundo
Que nos inspira a confiança para entrar
E nós entramos sem perguntar
O que vai acontecer a seguir

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

A Rua III

A nossa rua nunca amanheceu tão tardiamente
Depois de se quebrar na face humana
A luz do sol já esbatida e sem sentido
E o nosso amanhecer ser feito
De um pôr do sol

Os teus braços longos estendem-se
Pelos lençois brancos às riscas
E as almofadas amortecem ainda o nosso sono
Sentimos simultaneamente força
Para nos levantarmos e para irmos
Tomar o pequeno almoço a uma rua mais aberta
E vermos o fim do sol e então rirmos
Com a lua que como nós desperta
E toma o seu pequeno almoço entre as estrelas
Olhando para nós e vendo-nos como amigos
Que ouvem todas as suas preces e a entendem
Nem que por vezes um copo vazio a desfoque
E as suas palavras pareçam um silêncio mudo
Só para alguns loucos decifrarem

Depois tu continuas trilhando passos
Escapando entre árvores e prédios
Os passeios são para ti pontes imensas
Que atravessam rios vazios de pessoas
Como a água transparentes e incolores
Que servem apenas de refresco e de lavagem
O teu olhar só se fixa na imensa margem
Onde nunca a nossa vontade nos levou
Mas a vida soube guiar-nos por acaso
A essa nova terra erigida depois da gente
Perdida e sem sentido ou harmonia
Para esta orquestra de metáforas que se estende
Para além de onde o nosso dedo aponta

Eu conto cada passo dado nesta rua
Eu meço-a com os meus pés a cada noite
Vivo aqui como quem está preso a algo
Que não é ele mesmo mas que o espelho
Sempre cego e iluminado diz que sim
E em cada diálogo o convence facilmente
Que o que palpa e o que sente não é nada
E que a imagem por quem morreu Narciso
Foi quem Narciso veio a ser
E não havia mais Narciso além desse
Nem Narciso o poderia conhecer

“Assim vou ficar triste” disseste tu
Que acreditas que o mundo não é complexo
E que a mão que te agarra a cada momento
Veio porque o universo lhe ordenou
E que a linguagem é também uma mão
Que também te acaricia ou te maltrata
Pelo que o universo andou a decidir
E tu tens razão, tu és razão
Tudo isto se estende além do que podemos definir
E copiando desta realidade as imagens
Podemos ver o rosto do universo
Sem que ele se intimide ou se aborreça
Só o tempo do relógio nunca pára
Todo o outro está parado e nunca mexe
Nem um ponteiro porque não os tem
E o círculo tanto faz o seu tamanho
Pode caber na palma da tua mão
Que a sua perfeita forma é a certeza
Que não precisa ser para ter a consciência total
De que existe.

Também eu queria ter consciência
E existir.
Perder o ser, deixar perder, poder partir
Da evidência
De não ter o rosto que tenho nesta rua
E de não precisar de deixar
Cair de mim mais um pedaço
Cada vez que sou e me transformo
Em algo novo que não este ser
Cuja forma se transforma
Só porque existe e tem consciência

Varri por completo a lucidez que restou
Daquela luz plena e perfeita
Que fez tanta vez reencarnar
Na pele desta sombra cálida
Um perfume nunca sentido pelas flores
Que se espalham como pessoas pelos campos
E que cada manhã se preparam
Nuas ao vento e à claridade e ao frio
Como quem vai trabalhar e não sabe porquê

A tua rua, a tua rua
Já não é minha, já a perdi
Deixei que me arrastasse o instinto
E fui sendo escoado como um pedaço de papel
Pelas àguas que escorrem dos telhados
E por cada gota que acaba por cair no chão
E assim fui despedaçado enfraquecido
Conhecer a paisagem que não me chamou
Mas que eu fui porque estava ali
E sem saber porquê deixei que se tornasse
O quadro de tantos dias e momentos
Acreditando que a fé na velocidade e na atenção
Que prestamos às imagens é maior
Que as memórias falíveis frágeis desconcertantes
Como um trauma de passado que voou
Mas a memória é a rua maior do nosso acordo
Com as imagens que frente aos olhos nos passam
Nós não sabemos apreender e percebê-las
Até que a memórias as filtre e as acaricie
Como é sua especialidade ancestral
Com a vontade de se tornar num mundo perdido
Afinal vivo e ainda activo continuamente
Naquilo que é a acção do mundo e se traduz
Numa linguagem universal e imperceptível
A qualquer um dos sentidos humanos perceptíveis

Mas tu estás sentada numa cadeira
Depois da porta entre a sombra
Que te envolve vinda da rua que amamos
E envolta em fumo eu não te percebo como antes
Há cinzeiros que se afirmam entre as paredes estreitas
E à espreita há um gato que eu não conheço
E nas camas só há memórias e roupa suja
Que ninguém se lembrou de lavar
O fogão não é mais que o contraste de uma memória
Saborosa de um aroma de uma partilha
De vozes e de conversas ao manjar
De cadeiras bancos mesas e balcões
Sofás cinzeiros e tapetes que nos envolviam
Cortinas abertas, cortinas fechadas
Um leve sinal de chuva que não havia
Mas que se pressentia como aqueles
Que tudo pressentem e sabem que acontece
Nem que seja no outro lado do mundo

Ou noutra profundidade ou nível se quiserem
E há histórias contadas sem moral
Conclusões nunca tiradas porque não acabou
Espaços abertos entre estas paredes e
O candeiro lá em cima é uma lâmpada
Distante e que só nos acompanha para ver
Rostos e centrar os movimentos dos que falam
Mas que não deixam ler nem uma linha deste livro
E há murmúrios ao meu ouvido a contarem
Motivos, razões, curiosidades
Sobre alguns motivos que se apresentam à nossa volta
E eu fico a pensar o memso e que isso
É pena mas não faz mal, já passou,
Sim já passou e agora é assim que ela é
Mas não importa porque foi atrás no tempo
E o universo nunca pára e só as portas fechadas
São portas realmente
Mais difícil seria construir o muro
Que só o tempo sabe moldar para que não caia

Descemos e passamos entre a gente
Batemos palmas
Estamos profundamente alegres
Ansiosos pelo resto que se aproxima
Depois continuamos e dizemos coisas
Que a ninguém interessam
Mas que todos ouvem e discutem atentamente
Abrem-se valas para a discussão ter mais interesse
Depois fecham-se e os olhares recusam
Os caracóis que se encostam na parede
E que brilham vagamente mas que a
Fotografia que tiramos na nossa mente
Nos vai ajudar a recordar como se um anjo
Os tivesse tocado
E toda ela parecia maior

Eu esperava-te mas não vinhas
E eu sabia isso mas esperava
Depois de tudo só esta rua é a tua
O resto são visões nunca decoradas
Dos passos que lá tivemos de dar
Para chegar a esta rua onde tu
Nunca chegaste a estar
Ao que parece não os deste e não deixaste
Que isso te preocupasse e eu fiquei
Triste um pouco às vezes mas igual
O mais belo deste mundo nunca tem
Nada de importante para nos dizer
Além de que é belo e que nós
Nada valemos

Tudo quanto é maior não muda nada
Nós somos tão pequenos
Que só o que é pequeno no universo
Nos faz sentir maiores
Daquilo que somos de facto.

A Estrada

Vagueei em liberdade tanto tempo
Que o suor das nossas mãos dadas
Não me convencem de que o tempo
Nada tem a ver com a forma como vivemos
Procuro entre o escuro palpar
A sombra deste aroma noctívago
Mas rezo a quantos deuses julgo haver
Pedindo que se cumpra a promessa
Que é amanhecer

Ressaltei de repente enquanto dormia
E sabia-te a meu lado
No meio de uma estrada perdida
Onde todos quanto passam não existem
Estão na transição da sua vida
Procuram exaustos a sua margem

Bebe um pouco de água meu amor
Agora eu sei que aqui tu estás
E que não foges nunca mais deste horizonte
E que levitar é o máximo que estas asas
Nos conseguem levar
Os nossos pés estão activos
E caminhamos por entre pedras e poeira
Tudo o resto que nos rodeia
Sabe quanto a nossa voz é verdadeira
As nuvens estão escurecidas
Mas é dia
E enquanto não chover vou abraçar
Toda a razão que se separou na onda breve
Conhecemos o mar, mas ele está longe
Mas por aqui há um caminhar que nos reforça
A alma que não se cansa de procurar
Um fim ou um início ou um amigo

Ganhei então esta vitória?
Venci por completo toda a vida?
Nada quanto vemos é a decidida
Versão que contará a nossa história
Por enquanto vamos especulando
Entre os passos que damos e que amamos
Por isso eles são belos e sem sentido
Além do sentido que lhe damos
E que tomamos pelo nosso decidido
Estar na vida, senhores do nosso destino

Não há vozes neste caminho
Que alguém decidiu para ser nosso
Será de muitos mais além de nós
Será dos pássaros que voam entre os ramos
E dos lagartos que vagueiam pela berma
Húmida e de musgo decorada
E ainda da chuva e do vento e do sol
E de tudo quanto é ou cria vida
E tudo que é implícito numa estrada
Que vais de aqui para algum lado
Diferente daquela rua solarenga
Que de noite se tansformava
No corredor sombrio de todo o universo
E do que não era conhecido nesse universo

Por isso nos perdemos neste dia
Em que encontramos um novo aroma
Daquilo que preenche o quadro
Perfeito e mutável da nossa realidade
Da nossa palpabilidade e da nossa vontade
De existir neste palco que não é.

domingo, 11 de novembro de 2007

A rua II

Foi depois da visão impraticável
Que tomei como certo os sentidos
E deixei a descoberto os gemidos
Da alma toda e incurável
Ficou toda a armação do nosso corpo
Como vestes que vendavais rasgaram
Num remoinho que todas as flores voaram
Por um caminho mal aberto

E fiquei só
De repente
A contar à luz do dia as paisagens
Que não se vêem na escuridão que mostra tudo
Do que somos interiormente
E passei a conhecer com os olhos
Aquilo que sabia de coração
Mas que nunca tive coragem de arriscar

Assim foi esta vida que encontrei
Junto à tua rua tão calma neste fim
Passando lentamente querendo ficar
Junto ao poste inclinado e sujo
Olhando a tua porta e imaginando
O som da tua voz a chamar
“Entra para dentro
Aí faz frio” e o teu olhar
A dizer a mesma coisa em relação
A tudo quanto chamamos psique

Na proporção das ideias imediatas
Vi, como quem passa a língua
Nos lábios, a ansiedade que sentia
De humedecer toda a atmosfera
Seca e lúcida da expectativa
Pesada e delineada
E de deixar cair nela, gota a gota,
O líquido que inunda sonhos
De quem ama e tem vontade
De voar por entre nuvens mais altas

Não sei o teu nome quando me olhas
Não sei como chamar esse ser
Que diante de mim se edifica
E se constrói de novo
E toda a água solidifica
Deixando toda a nossa sólida vontade
Transformar-se na matéria superior
Que é a divina e que não tocamos
Nunca com as mãos do nosso instinto
Procuro tactear-te na perfeição
Da lineariedade do tempo
Mas ele não se organiza nunca
Ele tem em ti inconstâncias
Que me faz acreditar que tu és tempo
Onde eu amo cada hora que não medida

Ouve-se a voz de um poeta
Entre a flecha do tempo que vagueia
Pela velocidade da luz dos carros
Que vão viajando pela rua transversal
Lá ao fundo, depois da inclinação
Natural deste declive

“composição: disposição

do fim da nossa viagem

rumo a algo em vão

pela visão pela miragem

e à parte, de lado, à margem

há a nossa mais pura revelação

a primeiríssima constatação

da tua presença”

E a tua voz quente diz que não
Que a vida não tem recompensa
Toda a gente é densa
Cada corpo pensa
E cada alma é intensa
E nenhum, nenhum tem nesta existência
Forma de escapar a essa razão que nos vive
Por dentro da concha que somos e que parece
Sempre a mesma, sozinha e desalinhada,
Com propósitos e direcções só compreendidas
Porque somos humanos e pensamos
Que existe sempre uma direcção
Um propósito e uma razão
E que o mundo é o depósito
Em que deixamos a nossa oração
E não há grandes deuses nestas paragens
Para além de nós e da nossa vontade
Os santuários são miragens
E quando lá chegamos não rezamos
A relegião sufoca o seu deus à medida
Que se compreende

É tudo uma corrente
Elo a elo ligado a cada elo
E cada elo da corrente
É sempre um elo menor
Da corrente que vemos
E achamos que tem fim
Mas é o elo de outra corrente
Que outros acham finita

Até o que é menor que nós
Nos é tão incompreendido como o que é maior
E o maior que nós
Nos é invisível tanto quanto o que é menor

Faz-se um silêncio essencial
Como nunca senti nesta rua
A tua casa está fechada
E tu não estás lá dentro
Vais algum dia voltar à mesma casa
Nem que seja para morrer?
Foi a tua casa que eu escolhi para morrer
Contigo.
Por isso não me abandones
Depois da escolha tomada com certeza
Com que tomei o meu destino
Neste fim de tudo quanto olho
Aparece pelo menos ao meu funeral
Onde já não te posso olhar
Mas onde te vejo agora a derramar
A tua única lágrima verdadeira

Silêncio inicial
Antes deste mundo ser escrito
E de alguém pensar que se pode escrever
Algo que já existe e não se sabe sequer
Onde começou ou onde acaba
Ou qual é sequer o meio que nos traz
Aqui onde este muro está escrito
“Não separes o corpo da paixão”
E nos deixa admirávelmente preplexos
Ao descobrir que nesta rua
Não vivemos só os dois
E que a tua porta faz barulho
Bata quem bata de madrugada
E que só tu vais saber sem saber como
Que mão foi essa que bateu
Como se contasses os segundos de cada toque
E o intervalo ritmado que eles têm
Contivesse o desejo que me contém

Abres a porta e cá estou eu
Tu sais comigo, temos pressa
Temos o mundo à nossa espera
E esta rua já está gasta
Pronta a ser gasta na memória
E passou apenas a ser o santuário
Dos seus momentos bem passados
Agora o mundo novo se recria
E há novos passos para dar noutro chão
Um ar novo que toma outras direcções
E que nunca sabe que caras vai iluminar
O sol que nasce a cada dia

A rua

Foi à entrada da tua porta
Da tua casa perto dos carros
Numa rua cheia de cores apagadas
Pela noite que deixa as lâmpadas dourar
Com uma luz que mal vê e tudo torna
Mais quente e reservado
E abre à imaginação uma outra dança
Que não se guia pelo amor a nenhuma melodia
Que eu me despi daquilo que eu procuro
Deixei para trás como quem esquece
Uma chave no cinzeiro e fecha a porta
E sabe que as janelas de hoje em dia
São altas de mais para quem é obrigado
A viver rente ao chão
Há gatos por todo lado mas pouco miam
Mas a tua mão sim me agarrou
E me disse tantas coisas que eu não sei
O que fiquei a pensar do tempo

Acho que a tua cara se virou
De uma forma nova e que deixou
Uma luz nunca antes vista iluminar
A tua alma.

Alma que deu rosto a esse olhar
Que me viu já tantas vezes nesta rua
Mas só agora eu soube entrar
Porque decifrei a senha secreta
Nunca guardada, não era dita aos meus ouvidos
Ela não se ouve com os ouvidos
Nem se vê com quaisquer olhos
E podemos tê-la feito sem sabermos
Quando dormimos entre os lençois
Ou quando olhamos pela janela
Para a rua a ver as pessoas a passar
No dia, brilhante, cheio de luz
Que faz qualquer pessoa imaginar conversas
E encontros perfeitos
Tão diferentes da realidade
Mas só possíveis de imaginar na realidade
E que só o nosso sentido torna impossíveis

Não se procuram os sentidos
Acham-se quando menos se espera
Nos suspiros que não esperamos que viessem
E que deixamos sair como quem fala
Esperando resposta do olhar que está tão perto

Ou de um beijo

Eu sei que se sentisse os teus lábios
Ia pensar menos e se calhar não pensar nada
Mas depois ia querer voltar
E talvez as ruas se desfizessem
Para eu me perder e ficar sozinho
Porque as pessoas nunca param
Raramente as pessoas param numa rua
Onde só moram pessoas
E onde não há montras nem cafés nem floristas
E esta rua onde as pessoas moram
Só moram, nunca vivem, dormem
Não me deixa sonhar mais do que imagino
E eu queria reinventar-te toda
Como quem pega em ti ao colo
E faz-te festas como se fosse possível adormecer
Antes de a noite chegar

Não há dias assim nas nossas vidas
Que não se comparem pelo menos a mil outros
Mas faz silencio, não faças nem um gesto, ouve
Tudo parece repertir-se
Olha em volta.
Não olhes para mim, olha em volta,
Tudo parece repetir-se mas há um odor
Que está perdido a cada passo que se dá
E não há uma pessoa igual a si mesma
Como sabemos que os passáros não cantam de noite
A não ser que sejam corvos que também são pássaros
Mas ninguém gosta de ouvir essa canção

Se te levantasses de vez em quando
Eu não corria o risco de ficar a contemplar-te
E dizer coisas que nem sequer chego a pensar
Saem tão velozmente da minha mente
Que não chegam a ser controladas pelo raciocíneo
De dizer uma coisa de cada vez e lentamente
Saem simplesmente e não se escondem
Como quem passa a correr rente a um muro
E não se dixa cumprimentar

Não sei se já comparaste esta vista
Com aquela que tens do horizonte
Nem sei se adormeces a pensar o infinito
E a contar o que anseias à almofada
Mas eu sei que tudo o que eu te disse
Fez com que me tenhas marcado nesse quadro
Que é o quadro que toda a gente tem numa parede
Onde estão as pessoas que ouvimos
E a quem julgamos ouvir quando sozinhos
Bebemos algo quente duma chávena.

Às vezes chove e a tristeza
Ainda é maior que esta que espreita
A cada esquina desta rua.
Esta rua, esta rua, está despida
E a cada palavra está mais nua
Mas há uma porta
E dentro dessa porta há mais portas
E uma delas é a tua, numa dela estás tu
Aí, estendida sobre os lençois
Que têm o meu cheiro e tu aproveitas
Para ti, mas ele vai desaparecer
E a lua vai também desaparecer
E nada dura sempre como devia
Nada está por aqui eternamente
E é graças a isso que existimos
Senão tudo era o seu silêncio inicial
E não havia olhos porque os olhos
Só nascem depois de morrer o nosso toque
E as mãos ganharem calos que não queremos

Isto que é a vida não foi nunca
A desculpa para nada que fazemos
Somos por nós maiores que o pouco
Que na realidade somos e só quando
Algo inesperado e sombrio acontece
Sentimos como insólita a verdade
Dos acontecimentos necessários e naturais
Que nunca a natureza descreveu
Mas que nos chocam e ofendem por demais
Nós que temos sensibilidade
E achamos que um abraço é maior
Que uma casa que termina no 4º andar

Abre a porta que eu não imagino
A tua face destronada da sua coroa
Eu quero toda a magia por acontecer
Não quero prometer-me mais que a vida
Não quero pedir-te para ficares parada
E não quero ir embora, que ainda é cedo
Abre a porta que eu não deixo o frio entrar
Enquanto eu passo e te peço para ficar
No teu sofá onde me enrrosco e onde procuro
Aquecer algo mais que os ossos e os sonhos
Algo novo que nunca antes foi comprado
Pelas pessoas que tudo conseguiram comprar.

Não foste tu que me pediste a minha boca
Nem mesmo eu sei descrever a minha força
Para transformar o universo num espaço
Onde já foram contados todos os segundos
Mas eu queria o teu braço à volta do meu pescoço
Eu tive esse sonho visionado
E nunca mais adormeci.

O chão sabe girar mais que este mundo
E as ruas não são rios, são só ruas
Onde às vezes corre a vida e as palavras
São sempre apreciadas como uma aragem
Que vem do fim da rua a perseguirnos
E a dizer-nos “Olá! Espera por mim
Eu vou contigo” e vem connosco ao longo
De todo este caminho.

Ainda está longe o fim
O dia em que se possa dizer que acabou
E que o sol não brilha nunca mais
E que as pessoas já não se enrroscam nos umbrais
Dizendo coisas belas ao pescoço
E afagando os cabelos lentamente
Como se procurassem o amor numa caixa
Quando estão só a tocar o laço de um presente
E não há volta a dar para trás
Tudo foi no seu perfeito seguimento
A existência de toda a realidade.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Procura além disso
Pr’além disso
Depois da faixa
Que se encaixa
No teu riso

Por favor agarra isso
Por favor repete isso
Amor em fervor
Insubmisso
Por trás do teu compromisso

Pessoas chocáveis
Minimamente chocáveis
Amáveis impecáveis
Hábeis
Impagáveis…

Está calado!
Faz silêncio
Pré-fabricado
Nos teus olhos fechados
Fechados

***

Quando eu morrer
A noite que vier vai acabar
E eu numa outra noite adormecida
Que não vai ter força pr’acordar
Vou desejar a noite desta vida

quinta-feira, 20 de setembro de 2007


Menos glória na composição
Da nossa memória incorrigível
Somos horas, somos história
Somos o reconhecimento vão
Da verdade inatingível
Somos cobras, pensamento
Obras de encobrimento
Da natureza que não
É mais que o vento.

Passados que nos perseguem
Na nossa luta de existir
E soletramos na aragem
A nossa sabedoria porvir
E no nosso olhar há um mentir
À nossa sede de coragem
Trocamos a boca pela palavra
Deixamos que a razão a abra
Com a verdade à margem.

Por isso somos humanos
Por isso assim nos sentimos
Divergentes do plano
Dos deuses que criamos.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Doses de Humanidade

Pela noite entre o escuro vi chegar
Quando um vento já parado se ouvia
E a lua estava atrás do teu olhar
A ausência que o teu corpo prometia

Então onde está hoje a virtude
Que ontem se espelhava nessa fonte
Onde fui beber toda a verdade
Deixando o mundo além do horizonte

Perderam-se entre escombros e cortinas
As pérolas da razão e da vontade
E as ondas junto a mim são pequeninas
Doses de humanidade

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

A Criadora

Criaste um barco de papel,
Mas a água de papel
Não vinha à ondulação fiel,
Nem a chuva de mel
Chegou para mover a embarcação.

Por isso os teus dedos-furacão
Afundaram em pedaços a superfície do chão,
A vaga profundidade.

E trazias guradada
Na lenta certeza da vastidão
Toda a grandeza do nada.

domingo, 15 de julho de 2007


Vida. Encontro. Despedida.
Orla destruída e incapaz.
Morna a face que traz
A lua de sol embebida.

Perseguição. Órion. Céus.
Um. Dois. Teus.
Olhar pela sombra dos véus
A luz fornicada de deus.

Olhos, receptores da arte,
Do espírito e da força
Quente, sangue, e à parte,
Carne perdida, criança.

Vago? Não, nem verdade
Superior à dos olhos.
Olhares são vagos sonhos,
Real só a tarde e a saudade.

E é tarde a parte que compõe
A nossa recordação que esmorece
No canto do quarto que dispõe
Memórias e sonhos de que carece.

Nada.

Vaga? Vagamente são desejos
Do pintar os lábios transformados
em beijos.

E é tudo uma questão do tempo
Que damos ao espaço e do espaço
Que damos ao tempo, um momento
Construído pedaço a pedaço
Que segura o firmamento.

Vida. Sim, no fim é o encontro
Dos milénios mais que mil
Que aqui nos trouxeram ao ponto
Da despedida ser febril,
E não há memoria capaz
De aplaudir este e verso:
Cada frase é universo
E cada sentido o desfaz.

terça-feira, 26 de junho de 2007

Estava sol
E o teu olhar
Colidia com o meu
A tua cor condizia com a minha
E a tua voz anuía baixinha
O meu requiem para o céu

Parecia um velório improvisado
Entre chávenas de café
E açúcar já um bocado espalhado
Até às bases dos copos
As lajes deste mundo recriado
De sonhos mortos

Ah, sim, os copos estavam no chão
Partidos e repartidos entre as pedras
Ah, sim, caía tão bem o substantivo calçada
Mas era só areia, estávamos num deserto
As pedras que havia eram pedaços finitos
Da infinidade de areia que era menos finita.
Corrijo: imensurável.
As pedras ainda se contavam
Agora os grãos de areia
É que já não seria possível.

O sol brilhava neste velório
Brilhava neste deserto
Brilhava até às pedras
Descalças e tão perto
Do meu pé esperto!
E agora? Em que acreditas?
Da esperteza do pé meditas
E não concluis nada.
Nada, é a conclusão.

terça-feira, 12 de junho de 2007

Não há razões para crer que nada do que o homem faz na vida seja arte.
Não há razões para supor que o que homem faz na vida seja lógico.
A lógica é pressuposição,
um desejo antigo,
que rouba à vontade dos nossos gestos a verdade.

Que deus é esse que se apelida de Deus?
Deus é um conceito, como se pode crer assim num conceito?
A verdade em si é um conceito
E rezamos à verdade
Quer para a fazer valer, quer para contrariar o seu conceito.

E a Verdade está nas partes onde há verdade.
E a Verdade está ainda mais na não-verdade
Que é também Verdade.
A mentira só aparece no ser humano,
Tudo o resto é verdadeiro.
Por isso tudo o que em Verdade demos à verdade é conseguirmos ver não-verdades e acreditarmos nelas como verdades, e como não-verdades também.

E Deus? deus só existe como Deus em nós,
Tudo o resto é não-deus,
Deus somos nós próprios,
Nada além de nós é deus.
Tudo no resto é um deus maior e sem nome,
Incontestável, porque só o nosso é contestado e tem nome,
Porque pensamos ser maiores do que a Verdade.
E a verdade é que deus é para a mentira
O que não haver deus é para a verdade.

Estas palavras erigidas
Sobre as linhas
Em que caminhas
De braço dado com a vida

Não, não
Não a tua vida,
A tua solidão
De várias vidas.

Vê, são passos que nunca deste;
Lê, são os braços que não tocaste
Nem te abraçaram, mas que abraças
Na compaixão das suas desgraças.

O mundo, no fundo, inspiração,
Nem que não seja de o vermos,
É perfeito e solidão
Que se abstrai nos termos
De a vida ser vida, e não
Ser mais que sermos.

Não há festa
Nessa festa
Interior da besta.

Não há festa
Não há festa
Nessa festa que se arrasta
E consome tudo e tudo gasta.
Deixando imaculado o espírito e a arte.

Cuidado, cuidado!
Há marcado lado a lado
Amor e ódio em toda a parte.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

I

Amada a tua alma e o teu corpo
desejado como o magnetismo dos astros,
Revela-se na súbita colisão dos lábios
A súbdita implosão do nosso instinto

Convergindo, ao topo perfeito dos teus ombros,
O cume transparente do espírito e da força.
Os teus cabelos, cortinas da razão
lavada no suor dos nossos poros,

Sou teu escudo no teu dorso ancorado,
Colar de pérolas pendente em teu pescoço

que como uma serpente se estrangula nos teus seios
E percorre o teu ventre sibilando
à pele macia e tépida a rudeza
doutros desertos de areias tão paradas.

II

Os teus dedos sulcam a minha carne, desejando
os meus lábios perscrutando a tua pele
nas tuas pernas que escalo lentamente,
Lambendo terra fértil sinto, ouço,
Um vulcão penetrantemente palpitante.

Separo o teu ser até ao centro
E deixo confluir do nosso corpo
A nossa erupção, flamejante e simultânea,
De uma natureza divina e subterrânea.

III

À superfície do teu olhar está espelhado
o amor deste mar em que mergulhas.
No teu arfar ainda o passo desta dança.
A maresia e o suar e a calmaria
e a lava que a teus pés solidifica,

em sorrisos abraçados nasce um dia
E em dois seres um amor fica.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Caminho onde tu nem sequer vês
Não sonhas comigo nem sequer nos teus pesadelos
Eu estou para lá de onde todas as estradas e caminhos terminam.

Nunca vais querer tentar chegar,
Mas eu espero.
Porque só consegues ser onde estás,
Aqui não serás tu sequer,
Nem sequer tu serias se aqui tentasses chegar,
Por isso tu nunca cá estarás.

Mas quando o teu corpo
Já depois, já mais tarde, depois do sol
Vier por uma linha ao meu encontro,
Susterei o último suspiro de memória,
E serás toda a certeza dessa glória.

Incêndio

Como se pode inspirar a vida
a acontecer por si só?

mágica e brilhante
como ela deveria ser.
Mas não é.
Toda ela vai perdendo o brilho
quando a focamos, quando tentamos
mantê-la brilhante pelo artifício
de manter aceso algo que já devia ter apagado

como uma vela que,
num desespero de manter viva
a sua chama, mesmo depois de queimada
toda a vela em si, deixamos queimar a toalha,
depois a mesa,
depois o carpete,
depois a sala
e as memórias
- mas raramente o mundo.

Então vão-se tomando os dias por noites,
as chamas por necessidades,
o mais pelo mesmo,
o querer por desejo,
a vontade por poder,
o olhar por algo mais que olhar,
as palavras por algo mais que palavras.

E assim se criou aquilo que somos agora.

Teclas

Esse gigante,
Esse tempo...
Firme firmamento
Na incerta gente,
Árvore, folheado lento
Da noite presente.

Há noites que caem,
Há folhas que murmuram
E vidas que se espraem
Pelos olhares que viram.

Vastidão de começo e despedida,
Incerto sentido da clareza
- E um gigante malhado na certeza,
Vagueia lento em corrida.

Não há palavras como o vento
- Assim as folhas falavam
E as árvores eram o firmamento
Com que sonhavam.

domingo, 13 de maio de 2007

Cuidado, há ventos que sopram,
Há sinos que dobram;
E sinas legíveis
Em palmas suadas,
De mãos extensíveis
Às palavras escutadas.

Faz o que ouves e o que vês
Faz depois de o teres já feito
No espaço do e se fosse, talvez...,
Só mais tarde era uma vez...,
Por agora é o instante perfeito.

(E sabe tão bem o verso imperfeito
No parapeito
Da tua janela entreaberta
E a lua bela desperta
Para a versificação experta
De cada sujeito)

Sim, o bem e o mal,
Mais o falso ideal
Com o carimbo moral;
Não há herói natural.

O único herói que há
É o tempo, que para já,
Nunca será racional.

domingo, 29 de abril de 2007

Nunca tive mais do que o que vi,
Não, nunca em mim encontrei
Um pedaço que fosse teu,
Mas guardei
O mistério do teu céu.

O teu rosto é humano
E o teu corpo chama por mim
Assim.

De ano a ano
A fotografia que não tiramos
Está rasgada pelas mãos que não tocaste.

Mas nasceste.

Quanto mistério há nas tuas palavras,
E caso a tua boca abras
Não mais fará sentido
Esse sussurro absorto
Ao olhar acidental do nosso encontro
Neste ar de vago destino
Já morto.

Trouxe do meu mundo destruído
As sobras
Ruínas perfeitas de algo perdido
Pelas sombras

Vagueio ainda pelo olhar matinal,
Com o sol a vergar à tempestade
Orgulho de um sonho que afinal
É o que de mim sabe a verdade.

sexta-feira, 27 de abril de 2007


Gatinham a meus pés
Teus pensamentos.
Máquinas de marés,
De sentimentos,
E os pés,
Que pisam, como o tempo,
Teus pensamentos,
Qual marés,
De sentimentos,
A meus pés.
Que passam, como o vento,
Qual marés,
Que calcam com os pés,
Meus sentimentos.
Ouço os teus pés
Como pensamentos,
Rebentar qual marés
De sentimentos,
A meus pés.
Que como o vento
Se desfazem nas marés,
Os pés
Dos pensamentos,
Que calcam sentimentos,
Que se desfazem no tempo,
Qual marés.
Meus pensamentos
A teus pés,
Que caminham pelo tempo.
Teu pensamento,
Leve, como o vento,
Nas marés
Dos teus pés,
Que a meus pés,
São marés
De ida e volta.
Vida e revolta
Pelo tempo
Que o sentimento
Insulta,
Nas cíclicas marés,
Com pensamentos,
De pés.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Posso escrever para ter
O teu rosto posto abaixo
Desta mesa.
Posso gritar palavras sem falar
Fazer-te sentir no texto
Toda a certeza.

Mas eu não quero mais
Escrever com o pretexto
De haver uma vela acesa.

Não te quero a sentir nada
Quero-te a não sentir nada,
A ver a estrada parada da vida,
Essa outra história repetida
Vezes sem conta...

Vê: a consciência estava na montra;
Agora está partida.

E ela está algures na estrada,
Por aí, à solta, noutros braços.
Os deuses morreram todos,
Há demasiadas pegadas
E poucos passos.

E ninguém sabe onde
Fica o final.
Perdeu-se o fim, paciência,
Ninguém o esconde,
Está em todos essa total
Consciência.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Palavra que o Mundo Encerra

São palavras além das palavras
que palavras exprimem
as palavras mal escutadas.
Palavras que com palavras rimem
as palavas acabadas.
Palavaras que palavras admirem,
estas palavras caladas,
por palavras enterradas
nas palavras em que vivem.

Palavra silenciada
pela palavra ouvida
na palavra anuncida
à partida.

Palavras de terra e de paixão
palavra que o mundo encerra
na sua vasta e inútil compreensão
das palavras em guerra.

Dever relativizado

No amor existe acima de tudo guerra. É o antagonismo próprio dos corpos e das coisas. Não queiramos contrariar o que é.
As confusões que nos possam assolar o espírito (que apesar de tudo não é o adjectivo que descreva alguém que padece de confusão, embora que para ela lhe pareça de facto assolador) são matéria adepta da guerra e do amor que vive em tudo.
Acima de tudo isso existe um desejo de perfeição, a idealização característica indispensável à sobrevivência da alma. Quem não deseja mais que o que tem acaba por se sentir vazio.
A ambição que corrompe e não olha a meios para atingir os fins, mais preocupante que a mera incongruência moral, quebra por vezes a linearidade e objectividade espácio-temporal dos objectivos - e é altamente prejudicial.
A ambição não deve contradizer as possibilidades que o mundo real me vai apresentando, em consonância com aquilo que eu sou e aquilo em que me torno, a cada segundo, com a conexão com o anterior e com as reais opções que fazemos para nós... Não nos devemos basear em possibilidades abstractas que possam conflituar com as possibilidades reais segundo a lei da matéria. Para algo poder morrer tem de primeiro nascer, a nascer temos de acreditar que morre.
Vencer um medo não é nunca ter tido esse medo. Temer pela primeira vez é diferente de temer de novo. Apesar da atractiva cíclicidade dos estados de espírito e da (pré)destinação a que o Homem muitas vezes se agarra, a linearidade dos nossos passos caracteriza o novo Homem que luta contra as realidades aparentemente estáticas e seguras, o conforto das certezas, quer nas ideias quer na matéria.
No homem como na humanidade a luta constante entre a paz e a guerra, o amor e paixão, deve ser tomada como indispensável e salutar ao progresso que nos é facultado pela consciência – racionalização das reacções (expressões) do instinto à percepção – alteração contínua da experiência de existir socialmente, relativização do que é apresentado como certo, repartição do que é total à vista e constituído à visão microscópica da razão – da mesma forma que eu e tu somos o mesmo sendo diferentes, assim o e uma acção, uma ideia, um facto...

sexta-feira, 23 de março de 2007

Em águas outras

Tu estiveste um dia aqui sentada
E eu agora em pé olho esta rocha
E cheiro o aroma da primavera
Que se sente quase em nada
Da tua proporção.

Visto o teu olhar para sentir
A segurança nesta água
Mas a terra que tenho na boca
Não me deixa pedir
Mais do que o que o imediato
Deixou a boiar de ti.

Talvez um dia venha a perder o medo
De ir ao fundo
Largar o medo que tenho
De ir ao fundo.

Acaso ou o poema estrangeiro


Que procuras entre os escombros?
tu que passeias pela borda,
rente à gente,
depois da chuva,
pelo sol que vai olhando cada coisa.

Que encontraste?
diz-me! que força encontraste
em cada coisa que em ti pensas que vive?

Que sonhos tiveste
que te fizeram acreditar tanto
no pouco que és,
no pouco que vês
e no pouco que fazes ver?

Eu não te invejo,
não,
o meu coração
bate como ontem
e os meus olhos continuam
presos na mesma direcção.

***

O que é que comeste ao almoço
que te fez não querer jantar?
Isto são perguntas para ti,
amor vivido pelas sombras,
paixão perdida nos caminhos
de outras vontades,
crucifixo hirto de certos modos de experimentar
o tactear do rosto,
fechado e posto
a público pelas vozes nunca soltas.

Onde moras agora
que já não precisas desta rua
e desta casa?

Agora nem casa precisas,
sentes-te segura pelo mundo,
forte e protectora dos teus pares,
reciprocamente alinhados,
a emuralhar de grinaldas
o escuro desta morte
e desta razão pura lógica,
orgulhosa, da maléfica realidade
e consequência de existir
e de ter alma.

***

Vivemos no tempo
dos argumentos.
Os factos são notícia,
são as pegadas,
que os argumentos sempre deformam ou encobrem.
As causas são passos
Que mal se ouvem.

E os teus olhos,
onde estão agora?
Eles vão voltar, brevemente,
no próximo ciclo,
nos teus lábios por nascer!

Já nasceram. Feliz?

segunda-feira, 19 de março de 2007

A criança com a espingarda
Dispara.
E o mundo nada guarda,
Nada busca, nunca para.

O voo cai no chão
Estrondoso,
E ninguém ouve o som,
O mesmo, gasto, silencioso.

E o gesto na manhã
É preguiçoso,
A esperança é vã,
A força é sã.
Pretensioso
Avança, dispara, aguarda.

A criança com a espingarda.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Mas tu não estás
Mas tu não és
Amor de morte e de razão
Perspicácia do tactear óbvio das pontas

Para não perder o que vi
E sonhei ter
Roubei do que é teu
Para teres de regressar
E me enfrentar por entre a escuridão da porta

Ver-te regressar assim já morta para mim
Mas regressar
Significado humano, ilusão detestável razão

O que os olhos vêem é o teu regresso
(mais longe ela ficou, para nunca voltar mesmo)
Os meus olhos vêem que tu voltaste
(mas não és tu quem eu queria, não assim)
Tu, sim, reconheço os teus traços
(quem és tu que bate agora à minha porta?)
Aqui estás, abraça-me
(abraço falso não-abraço de um corpo frio)
És quem aqui está, deixa-me aquecer-te os braços frios
(abre os olhos, ela está morta, tu mataste-a)
Vá, meu amor, fala-me. Onde está o teu sorriso?
(o único sorriso que transparece é a ruga defunta dos espasmos da alma)
Onde está o teu odor de primavera?
(putrefacção da alma que se mudou)
Porque foges? Porque partes? Porque levas contigo o que é nosso?
(é só dela... só dela)

Hoje sinto-me mais feliz que ontem,
Sinto-me mais preso a mim...
Para quê fingir? Se estou tão desgraçadamente perdido em me encontrar na firmeza rude de qualquer rocha.
A rocha não sente.
A rocha não pensa.
A rocha não é.
E é feliz em qualquer circunstância,
Atravessa tempos, é lugar, é símbolo.
Quantas existências se sentam nela?
E ela, sem ouvir, ou ver, sabe todos os romances.

Ah! Mas o meu coração não é rocha,
Nem o meu pensamento, por mais que tente.
Queria eu cimentá-lo!
Mas sem poder, sou corpo rastejante e pensante, e sinto tudo isso na rocha que sonho.
Rocha do atravessar os tempos,
Rocha de ficar, imóvel, e passar
Como o rio e o vento, e tudo passa.
Sentir os meus pedaços que foram a desfazer-se em areia e pedras,
Pela força do mar que sinto fazer moças na minha ponta mais aguda.

Abram os deuses lugar para mim entre as rochas,
Quero-me areia agora!
Desfazer-me em partes de várias rochas,
De vários romances,
Subir a rocha que pisas, e olhas e escalas ou admiras,
Mas ser ela,
Sem ser nada de nada além o ser um pedaço firme que não finge sequer mexer-se,
A não ser quando o vento ou o mar decidirem abalar ou desfazer a rocha que eu sou.

Ignorantes os que da vida se arrependem
E mais os que a ela se prendem
Não há nada para ser descoberto ou experimentado
Que não nos sirva apenas de raiz e compromisso.
Por isso eu me abstenho, por isso me distancio
Faço o que é nada, o que é nulo, o que é vazio
Deslumbro-me com a capacidade de visão...
Distorço e não guardo nada na memória
Apenas guardo minutos e segundos contados
O cálculo nulo da nulidade do tempo
O zero que é a sombra do um.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Que me importa o teu nome
Se quando eu te chamo
Só na perpétua imagem da minha mente te vejo
E nem sempre és igual
Nem sempre és a mesma
Nem sempre és sempre
Ás vezes és tão outra.

Que me importa o significado
Toda a linha que comporta todo o fixo movimento da voz
A estrada que encaminha para a percepção
Do sentido
Se tu
E só tu
Me bastas
Sendo Tu.

De que serve todo e qualquer gesto
Qualquer palavra
Qualquer expressão
Quando o meu gesto é estender-me no chão
Quando a minha palavra é um grito críptico
Quando a minha expressão é a flácida face babada na carpete
Não
Não procuro olhar para dentro de mais nada
Não quero ficar preso a mais nada
Não quero saber, não quero conhecer
Não quero perceber tudo o que todos inventam para ser percebido
Não quero fazer parte de algo que não é mais que a ilusão
O jogo de Deuses que morrem
A criação de pequenas inexistências
Isto é, Civilização.

E gosto dela
Da CI-VI-LI-ZA-ÇÃO
Porque gosto de dizer CI-VI-LI…
É giro sem ser giro porque giro não é giro
Quero dizer CI-VI-LI-ZA-ÇÃO em cinco pulos
E chegar ao chão e sorrir com os lábios
E com a boca
E com sons que saem dela.

Só porque alguém resolve dizer que estar contente
É sorrir
Só por alguém dizer que alguém tem um aspecto alegre
E outros têm um aspecto triste
Que sabem eles sobre mim?
Que sabem eles do que eu penso?
Quem lhes diz a eles que eu penso?

Quero fechar-me aqui neste quarto
Que nem sequer é um quarto
E ficar a escrever coisas
Ah…
Escrever coisas é bom
Porque enquanto escrevo
Não vos estou a aturar
A dizer que este é maluco
Aquele é parvo
E o outro é doido
E que este inventou e fez e chegou primeiro que o outro a seguir
E que os Ingleses são frios
E os Brasileiros são bem dispostos
Quem inventou o volt ou o telefone ou a bússola
E quem é que descobriu a penicilina
Ou que isto é Bahaus
E isto é Art Deco
Ou que o amarelo está deemodé
Ou que o preto esta sempre em voga
E que isto é Rock mas que ás vezes é quase Funk
Ou que é Punk mas é “Comercial” ou se é Pimba ou Música Popular
Que me importa isso? Que me importa que me importe?
Não me importa nada
Porque eu estou além da vez que passou.

Tristes passos dados no caminho
Alegres as vozes que nos fazem chorar
Na vez de estar aqui a receber a herança dos antepassados
Mortos
Passados
Enterrados

Quem viu a grande explosão de tudo isto?

Aqui de soslaio para a caixa mágica, explodem mil milhões de parvoíces na alta tecnologia, ao serviço da nova arte comercial. Publicidade, obras mainstream da classe social dominante. Serviço para nos criar de novo. E o que é imprevisível? Qual será o homem de hoje que será amanha exaltado? Há sempre um rosto por mais que nos tentem confundir com esta liberdade. Privaram-nos da liderança. Privaram-nos do ideal, do fanatismo… de acreditar! Espalhados à nossa voltam estão quadros em branco, vazios, sem qualquer conteúdo. Querem-nos vender, comprando-nos.
Era tão bonita a palavra união. Afirmação. O grito exaltado da revolta por alguma coisa. Hoje são cacos espalhados no escuro do ar que respiramos. Ínfimos pedaços que nos esquartejam o interior. Prendam a liberdade que anda à solta. Caso contrário, eu vou-me sentar aqui, e tentarei não pensar em nada.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

think delight

they don’t look to the light
and then think about the light
they think about the light
and then think delight
without the delight
of looking at the light!

quarta-feira, 3 de janeiro de 2007


Às vezes, mas só às vezes,
Ouvem-se vozes, sussurros,
baixinho, mas sem requinte,
ruidosos como murros
Em portas fechadas a trinque
Pelo medo a todas as teses.

Às vezes, em brincadeiras,
Ouvem-se palavras sussurradas
baixinho, sono dormente
sem som, quase ligadas
Directamente à mente,
Crepitar duma extinta lareira.

Às vezes, de vez em quando,
Quando o sono não vem
Imaginam-se palavras, dizeres,
Até pessoas, que ninguém,
Entregue aos maiores prazeres,
Ouve ao adormecer de cansado.

Ah! triste rebeldia de a nada pertencer,
Filosofia de viver entre a fada
E filosofar a vida como estrada
Sem confiar que ser
É ver, e aceitar que viver,
Faz de nós, mais que tudo, nada.

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