quinta-feira, 15 de novembro de 2007

A Rua III

A nossa rua nunca amanheceu tão tardiamente
Depois de se quebrar na face humana
A luz do sol já esbatida e sem sentido
E o nosso amanhecer ser feito
De um pôr do sol

Os teus braços longos estendem-se
Pelos lençois brancos às riscas
E as almofadas amortecem ainda o nosso sono
Sentimos simultaneamente força
Para nos levantarmos e para irmos
Tomar o pequeno almoço a uma rua mais aberta
E vermos o fim do sol e então rirmos
Com a lua que como nós desperta
E toma o seu pequeno almoço entre as estrelas
Olhando para nós e vendo-nos como amigos
Que ouvem todas as suas preces e a entendem
Nem que por vezes um copo vazio a desfoque
E as suas palavras pareçam um silêncio mudo
Só para alguns loucos decifrarem

Depois tu continuas trilhando passos
Escapando entre árvores e prédios
Os passeios são para ti pontes imensas
Que atravessam rios vazios de pessoas
Como a água transparentes e incolores
Que servem apenas de refresco e de lavagem
O teu olhar só se fixa na imensa margem
Onde nunca a nossa vontade nos levou
Mas a vida soube guiar-nos por acaso
A essa nova terra erigida depois da gente
Perdida e sem sentido ou harmonia
Para esta orquestra de metáforas que se estende
Para além de onde o nosso dedo aponta

Eu conto cada passo dado nesta rua
Eu meço-a com os meus pés a cada noite
Vivo aqui como quem está preso a algo
Que não é ele mesmo mas que o espelho
Sempre cego e iluminado diz que sim
E em cada diálogo o convence facilmente
Que o que palpa e o que sente não é nada
E que a imagem por quem morreu Narciso
Foi quem Narciso veio a ser
E não havia mais Narciso além desse
Nem Narciso o poderia conhecer

“Assim vou ficar triste” disseste tu
Que acreditas que o mundo não é complexo
E que a mão que te agarra a cada momento
Veio porque o universo lhe ordenou
E que a linguagem é também uma mão
Que também te acaricia ou te maltrata
Pelo que o universo andou a decidir
E tu tens razão, tu és razão
Tudo isto se estende além do que podemos definir
E copiando desta realidade as imagens
Podemos ver o rosto do universo
Sem que ele se intimide ou se aborreça
Só o tempo do relógio nunca pára
Todo o outro está parado e nunca mexe
Nem um ponteiro porque não os tem
E o círculo tanto faz o seu tamanho
Pode caber na palma da tua mão
Que a sua perfeita forma é a certeza
Que não precisa ser para ter a consciência total
De que existe.

Também eu queria ter consciência
E existir.
Perder o ser, deixar perder, poder partir
Da evidência
De não ter o rosto que tenho nesta rua
E de não precisar de deixar
Cair de mim mais um pedaço
Cada vez que sou e me transformo
Em algo novo que não este ser
Cuja forma se transforma
Só porque existe e tem consciência

Varri por completo a lucidez que restou
Daquela luz plena e perfeita
Que fez tanta vez reencarnar
Na pele desta sombra cálida
Um perfume nunca sentido pelas flores
Que se espalham como pessoas pelos campos
E que cada manhã se preparam
Nuas ao vento e à claridade e ao frio
Como quem vai trabalhar e não sabe porquê

A tua rua, a tua rua
Já não é minha, já a perdi
Deixei que me arrastasse o instinto
E fui sendo escoado como um pedaço de papel
Pelas àguas que escorrem dos telhados
E por cada gota que acaba por cair no chão
E assim fui despedaçado enfraquecido
Conhecer a paisagem que não me chamou
Mas que eu fui porque estava ali
E sem saber porquê deixei que se tornasse
O quadro de tantos dias e momentos
Acreditando que a fé na velocidade e na atenção
Que prestamos às imagens é maior
Que as memórias falíveis frágeis desconcertantes
Como um trauma de passado que voou
Mas a memória é a rua maior do nosso acordo
Com as imagens que frente aos olhos nos passam
Nós não sabemos apreender e percebê-las
Até que a memórias as filtre e as acaricie
Como é sua especialidade ancestral
Com a vontade de se tornar num mundo perdido
Afinal vivo e ainda activo continuamente
Naquilo que é a acção do mundo e se traduz
Numa linguagem universal e imperceptível
A qualquer um dos sentidos humanos perceptíveis

Mas tu estás sentada numa cadeira
Depois da porta entre a sombra
Que te envolve vinda da rua que amamos
E envolta em fumo eu não te percebo como antes
Há cinzeiros que se afirmam entre as paredes estreitas
E à espreita há um gato que eu não conheço
E nas camas só há memórias e roupa suja
Que ninguém se lembrou de lavar
O fogão não é mais que o contraste de uma memória
Saborosa de um aroma de uma partilha
De vozes e de conversas ao manjar
De cadeiras bancos mesas e balcões
Sofás cinzeiros e tapetes que nos envolviam
Cortinas abertas, cortinas fechadas
Um leve sinal de chuva que não havia
Mas que se pressentia como aqueles
Que tudo pressentem e sabem que acontece
Nem que seja no outro lado do mundo

Ou noutra profundidade ou nível se quiserem
E há histórias contadas sem moral
Conclusões nunca tiradas porque não acabou
Espaços abertos entre estas paredes e
O candeiro lá em cima é uma lâmpada
Distante e que só nos acompanha para ver
Rostos e centrar os movimentos dos que falam
Mas que não deixam ler nem uma linha deste livro
E há murmúrios ao meu ouvido a contarem
Motivos, razões, curiosidades
Sobre alguns motivos que se apresentam à nossa volta
E eu fico a pensar o memso e que isso
É pena mas não faz mal, já passou,
Sim já passou e agora é assim que ela é
Mas não importa porque foi atrás no tempo
E o universo nunca pára e só as portas fechadas
São portas realmente
Mais difícil seria construir o muro
Que só o tempo sabe moldar para que não caia

Descemos e passamos entre a gente
Batemos palmas
Estamos profundamente alegres
Ansiosos pelo resto que se aproxima
Depois continuamos e dizemos coisas
Que a ninguém interessam
Mas que todos ouvem e discutem atentamente
Abrem-se valas para a discussão ter mais interesse
Depois fecham-se e os olhares recusam
Os caracóis que se encostam na parede
E que brilham vagamente mas que a
Fotografia que tiramos na nossa mente
Nos vai ajudar a recordar como se um anjo
Os tivesse tocado
E toda ela parecia maior

Eu esperava-te mas não vinhas
E eu sabia isso mas esperava
Depois de tudo só esta rua é a tua
O resto são visões nunca decoradas
Dos passos que lá tivemos de dar
Para chegar a esta rua onde tu
Nunca chegaste a estar
Ao que parece não os deste e não deixaste
Que isso te preocupasse e eu fiquei
Triste um pouco às vezes mas igual
O mais belo deste mundo nunca tem
Nada de importante para nos dizer
Além de que é belo e que nós
Nada valemos

Tudo quanto é maior não muda nada
Nós somos tão pequenos
Que só o que é pequeno no universo
Nos faz sentir maiores
Daquilo que somos de facto.

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