domingo, 11 de novembro de 2007

A rua II

Foi depois da visão impraticável
Que tomei como certo os sentidos
E deixei a descoberto os gemidos
Da alma toda e incurável
Ficou toda a armação do nosso corpo
Como vestes que vendavais rasgaram
Num remoinho que todas as flores voaram
Por um caminho mal aberto

E fiquei só
De repente
A contar à luz do dia as paisagens
Que não se vêem na escuridão que mostra tudo
Do que somos interiormente
E passei a conhecer com os olhos
Aquilo que sabia de coração
Mas que nunca tive coragem de arriscar

Assim foi esta vida que encontrei
Junto à tua rua tão calma neste fim
Passando lentamente querendo ficar
Junto ao poste inclinado e sujo
Olhando a tua porta e imaginando
O som da tua voz a chamar
“Entra para dentro
Aí faz frio” e o teu olhar
A dizer a mesma coisa em relação
A tudo quanto chamamos psique

Na proporção das ideias imediatas
Vi, como quem passa a língua
Nos lábios, a ansiedade que sentia
De humedecer toda a atmosfera
Seca e lúcida da expectativa
Pesada e delineada
E de deixar cair nela, gota a gota,
O líquido que inunda sonhos
De quem ama e tem vontade
De voar por entre nuvens mais altas

Não sei o teu nome quando me olhas
Não sei como chamar esse ser
Que diante de mim se edifica
E se constrói de novo
E toda a água solidifica
Deixando toda a nossa sólida vontade
Transformar-se na matéria superior
Que é a divina e que não tocamos
Nunca com as mãos do nosso instinto
Procuro tactear-te na perfeição
Da lineariedade do tempo
Mas ele não se organiza nunca
Ele tem em ti inconstâncias
Que me faz acreditar que tu és tempo
Onde eu amo cada hora que não medida

Ouve-se a voz de um poeta
Entre a flecha do tempo que vagueia
Pela velocidade da luz dos carros
Que vão viajando pela rua transversal
Lá ao fundo, depois da inclinação
Natural deste declive

“composição: disposição

do fim da nossa viagem

rumo a algo em vão

pela visão pela miragem

e à parte, de lado, à margem

há a nossa mais pura revelação

a primeiríssima constatação

da tua presença”

E a tua voz quente diz que não
Que a vida não tem recompensa
Toda a gente é densa
Cada corpo pensa
E cada alma é intensa
E nenhum, nenhum tem nesta existência
Forma de escapar a essa razão que nos vive
Por dentro da concha que somos e que parece
Sempre a mesma, sozinha e desalinhada,
Com propósitos e direcções só compreendidas
Porque somos humanos e pensamos
Que existe sempre uma direcção
Um propósito e uma razão
E que o mundo é o depósito
Em que deixamos a nossa oração
E não há grandes deuses nestas paragens
Para além de nós e da nossa vontade
Os santuários são miragens
E quando lá chegamos não rezamos
A relegião sufoca o seu deus à medida
Que se compreende

É tudo uma corrente
Elo a elo ligado a cada elo
E cada elo da corrente
É sempre um elo menor
Da corrente que vemos
E achamos que tem fim
Mas é o elo de outra corrente
Que outros acham finita

Até o que é menor que nós
Nos é tão incompreendido como o que é maior
E o maior que nós
Nos é invisível tanto quanto o que é menor

Faz-se um silêncio essencial
Como nunca senti nesta rua
A tua casa está fechada
E tu não estás lá dentro
Vais algum dia voltar à mesma casa
Nem que seja para morrer?
Foi a tua casa que eu escolhi para morrer
Contigo.
Por isso não me abandones
Depois da escolha tomada com certeza
Com que tomei o meu destino
Neste fim de tudo quanto olho
Aparece pelo menos ao meu funeral
Onde já não te posso olhar
Mas onde te vejo agora a derramar
A tua única lágrima verdadeira

Silêncio inicial
Antes deste mundo ser escrito
E de alguém pensar que se pode escrever
Algo que já existe e não se sabe sequer
Onde começou ou onde acaba
Ou qual é sequer o meio que nos traz
Aqui onde este muro está escrito
“Não separes o corpo da paixão”
E nos deixa admirávelmente preplexos
Ao descobrir que nesta rua
Não vivemos só os dois
E que a tua porta faz barulho
Bata quem bata de madrugada
E que só tu vais saber sem saber como
Que mão foi essa que bateu
Como se contasses os segundos de cada toque
E o intervalo ritmado que eles têm
Contivesse o desejo que me contém

Abres a porta e cá estou eu
Tu sais comigo, temos pressa
Temos o mundo à nossa espera
E esta rua já está gasta
Pronta a ser gasta na memória
E passou apenas a ser o santuário
Dos seus momentos bem passados
Agora o mundo novo se recria
E há novos passos para dar noutro chão
Um ar novo que toma outras direcções
E que nunca sabe que caras vai iluminar
O sol que nasce a cada dia

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