Morto
I
Não vou desperdiçar o agrado
Que tenho por certo na melodia
À extensão do certo e absoluto
Sem metade do esplendor do dia
Que interessa a palavra e a promessa
Sem a extensão do brilho do prazer
Vulcão sem erupção
Dançar sem música, olhar sem ver.
Não te vou dizer o que fazer
Nem te pedir que te aproximes
Vens se vieres, caso não venhas
Viverás por esses crimes
II
Ouço uns passos atrás de mim a supor
Pobre vadio, passo a passo, mais perto e sujo
Pede-me um cigarro, “claro!”, e vai com a dor
Que me deixa de pena e de nojo
Sem culpa me desculpo, mas que culpa
Posso eu ter do que não tens e do que vens.
Sinto-me em ti, e eu outro revivo à lupa
A tristeza e o alegre infortúnio que tu tens.
Dou mais um bafo no cigarro e atiro-o para o chão
Olho as luzes, a pedra, e algo de dor não sai
Estou outro, mais próximo. Altruísmo igual à tentação
à inveja à cobiça. Algo da máscara cai.
Imagino em mim outro eu, outra existência,
Revejo o passado e o presente
Tolda-me o olhar a causa e a consequência,
Sento-me exausto nas escadas da mente.
Que força maior há que o individual
Retaliando sem retaliar à voz da gente
Olhar do meio a totalidade social
Olhos de um diferente indiferente.
III
Nasce a tua voz, como nascente
Penetrando funda e grave a minha face
Poluída e inócua pela sombra inerente
À luz bifurcada que aquece.
Continuo, passo a passo
O luar, lá em cima, que nos observa
Com os olhos te trespasso
E o cheiro a tudo, e o nada a erva.
Grave. Parado. De repente um grito
Um suspiro aflito.
Renascendo do mais profundo que existe
Algo de palpável no teu destino
Aí! Aí! Na tua pele que brilha e ris-te
E o teu riso renego e obstino
Depois abro a boca e calo-me, paraliso
Fecho os olhos, viro costas, parto
Tu ficas embebida
Em ti
E eu sigo a vida
Morto.