terça-feira, 20 de novembro de 2007

A Estrada IV

Este é o teatro sem gestos
O teatro da memória sem factos
A retirada oblíqua da luz
Para o não cair do pano
Mas sim para o cair da escuridão
Que é também um pano

Esta é a poesia atroz
Que se demarca no nosso intento
De escrever o mundo
Como se este tivesse parado
E nós o fotografassemos
Sem espreitar pela objectiva
E no rolo ficasse gravada
A intenção

Este é o caminho que seguimos
Na nossa mente
Para chegar à recordação

Esta é a corda no poço

E nesta estrada vamos
Vamos como quem vai para algum lado
De onde não há recordação de termos partido
E ainda menos a intenção de chegar

A Rua V

Há um vazio que se alastra
Um nada que mais nada se torna
No passar de cada segundo
Tão doce esta imagem de ti
Esta boca parada a olhar para o nada
Que se alastra
O pensamento quieto
De um corpo inquieto
E as recordações a fervilhar
Como quem tenta ouvir atentamente
O que se diz na mesa ao lado
Mas aqui não há mesa nenhuma ao lado
Nem uma mesa tenho à minha frente
Só existe esta cadeira onde eu sou
E me encontro meio erguido entre o ar
Que passa nos meus ouvidos e parece trazer
Memórias de discursos e batalhas
Que se alastram e que se alimentam
Daquilo que eu deixei para trás de mim
Sem me lembrar que nunca nada desaparece
E agora se transformou no que não esperava
Que se transformasse

Tu saíste daqui de repente sem notar
Que eu estava contigo e por ti
E deixas-te-me a boiar nesta aragem
Que corre agora para me levar
À outra margem
Onde tu estás eu sei que estás
Eu sei para onde foste mas não quero
Perseguir-te como ainda hoje a constelação
Do escorpião persegue Oríon.

Parei por entre a gente e fiquei
Surpreendido como nada ocorre
No mundo, tudo é estático
Ninguém mexe nem um dedo
E no entanto tudo parece modificar-se
A um ritmo que não explica bem porquê
Nem parece ter um compasso
Mas os deuses desta rua sabem
Trautear nas suas palavras
Que não têm som aos nossos ouvidos
Mas que as sentimos em vagas de tristeza
E alegria que oferecemos ao momento

Distancia-te do que vês
É ilusão
Nesta rua não ficaram os porquês
Nenhum carteiro os deixou
Aceita a tua existência
É o teu cartão de visita nesta instância
Que se sobrepõe a tudo quanto é
Ou existe para além do que pensamos
Ser a verdadeira identidade deste mundo
São questões já decoradas dos antigos
Que sentiram que não valia a pena
Encontrar além das cortinas a janela
Que no fundo sempre teve fechada para a rua
Onde por vezes um ou outro ousou espreitar
Como uma criança com o medo do sol
Mas fechou-a rapidamente porque a luz
Não deixou perceber muito bem o que iluminava
E nunca ninguém abriu a janela
Por isso o nosso reflexo sempre pareceu maior
Que o que estava para além do vidro

E aqui dentro nesta casa
Brincamos ainda
Crianças que apelidam as cores
Que tocam as formas
E aos cheiros reagem com expressões
Que nunca viram no seu rosto
Mas imaginam que são uma outra coisa
Um centro gravitacional à roda do qual
Tudo o resto existe e que sem eles
O caos se imporia
Como um homícidio de honra.

Nunca se confia numa janela
Ela só sabe cegar os nossos passos
Antes a porta utilizemos para espreitar
Com o próprio corpo
O que se passa no mundo
Ficar distante é arriscado
Tem cuidado
Quando voltares
A abrir uma cortina
E nunca sejas suicida ao ponto
De pensar em abrir a janela
Sai pela porta e desce
Não sejas cobarde
Vivendo o que não sentiste

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

A Rua IV

Mas a multiplicidade das ruas
Não me deixou ver além
Das paredes que se encolhem a cada esquina
Foi tão simples quanto isso este olhar
Desabrochado à água pura e límpida
Que embatia em cada carro que veloz
Passa sem deixar opinião

«Tu estás certa e eu estou errado
Vou sentir a tua falta agora que foste
Embora
» foi assim que ele deixou
Marcada nesta música atroz
A beleza do passado que transtorna
O presente delicado e não existe
Força maior que a nossa vontade
De existir nesse passado que presente
Seria o nosso quadro mais dourado
Memórias para que vos quero
Vida para que te vivo
Se espero só encontrar o que já foi
A cada passo que dou em ti
E sei perdida de mim a repetição
E cheiro nos meus dedos a certeza
De que nada se repete e tudo é
Único e verdadeiro quando acontece
E não há força neste universo
Capaz de mudar isso de nós

É pena
Porque é ilógico
Constrangedoramente ilógico
Nunca conseguimos conceber o fim
Tudo para nós anda à roda
De nós
E todo o fim é a atroz
Voz da irrespirável ausência
De nós
Perfeita consciência
De que o mundo se abstrai
E nós somos sozinhos o universo
Em que nunca caminhamos

Mas não te importes com isso
Há de novo no ar uma outra soma
Que se soma à tua expectativa
De existir e de ter forma
De fugir por entre a intempérie
O mundo que se aporta à nossa rua
O mundo que se quis por entre o espaço
Vazio e que erigiu aqui um novo tempo
Que se conta desde o zero como todos
Os tempos que marcam espaços novos
Ela estava em pé e chovia
Havia coisas que não se entendia
Mas agora que revistas são perfeitas
Doses de arte embelezadas na memória
E na forma como gravamos o que acontece
Os nossos olhos nunca vêem nada
Mas são janelas importantes para nós
Sendo mais o interior que o exterior
Agora percebo, o mundo lá fora não é
O mundo só existe quando existimos
E árvores caem desgarradas na floresta
E não fazem nem um som

São árvores que não são árvores
Até serem amadas por alguém
E alguém adormecer com a sua imagem
Tornando-as aí o signo que descreve
Árvore na sua linguagem
Nós somos herméticos
Fechados nas gabardines porque a chuva molha
Porque ouvimos uma vez que ela molhava
E nunca mais corremos pelas ruas
A ouvir realmente o seu som e a saber que molha
Não com o pensamento
Mas connosco propriamente no momento
Em que ela cai no nosso rosto e nos descreve
O nosso ser vivo e total
Como ouço sussurrar daquela estante
Onde a Sophia soube pôr em cada verso
Cada gota d’água do seu universo

Então agarra a minha mão neste momento
Não há nada para além do que sentimos
E a vida encaixa-se perfeita neste vasto
Labirinto de ruas habitadas em casas e caixotes
E tudo funciona na perfeição que funciona
Não interessa o que pensamos sobre as coisas
As coisas são como esta chuva que nos molha
E as nuvens são deuses dessa chuva
Que cai e sabe porquê
E não interessam esses ventos que nos chamam
Perguntando a direcção que tomamos:
Frente ao desconhecido caminhamos
À procura da razão que nunca amamos

A rua e esta chuva são presentes
Que não devemos rejeitar dizendo não
Mas sim sem um som deixar acontecer
A viagem mais longa de que há memória
Quando toda a gente esperava que ficássemos
Todos fechados em casa

sábado, 17 de novembro de 2007

A Estrada III

Já vos caláveis
Arremessadores de palavras
Tansversais

A minha voz é muda
Mas não muda
E é sempre o mesmo silêncio
Constrangedor
Dos ventos que não sopram

Antes de aqui estarmos a harmonia
Era outra era vasta e gratuita
Agora está cercada pelas linhas racionais
De quem comprou com as palavras
Todo o mundo que antigamente
Se estendia e todo o ser o entendia
Na sua corrente alucinante de imagens
E que na noite se cobria simplesmente
Apagando toda a luz excepto a lua
Agora brilham altos os painéis
E as lojas estão abertas
As necessidades expandem-se a anéis
Que não governam nenhum sentimento
E que o amor não passa
De uma triste e dura carapaça
Que se veste e se exibe em qualquer praça

Tudo passa como tudo passa
E pouco fica, só uma pequena forma
Que mal se distingue e se assemelha
No conjunto que une tudo e tudo torna
Diferente e irreconhecível
Avançamos no sentido que não prevemos
Deixamo-nos ir por onde não queremos
Somos tomados pelo tempo que não deixa
Antever mais que este presente que se mostra
A cada passo que damos e não é nada
Inteligente pensar que ele é pensado
E que transforma alguma coisa além dos olhos
Este quadro é gigante e nós só vemos
Aquilo que o imediato nos deixa descobrir
Há milhares de outros pontos que não estão
Disponíveis nunca durante tudo o que vivemos
Por isso vivemos, por isso caminhamos sem saber
O que deixamos propriamente que seja
Válido e importante à humanidade
Mas pensando calmamente e sem verdades
Conseguimos oferecer a nossa vida
Ao mais alto efeito que é viver
E fazer de cada vontade um gesto
Que faz mover os ventos de amanhã

Amanhã de manhã já esta rua cá não está
Isso é a estrada que se fez deste caminho
Que é o de ir e descobrir sem partir
Uma rua sem raízes e sem mais
Recordações que recordar que lá passamos
Mas a rua que ficou no pensamento
Não é prevista não é vista só sonhada
Cada estrada pode ser sem nós sabermos
A rua pela qual tanto ansiamos
Mas se vamos prosseguir pelo sonho
Uma outra rua
Então que se deixe esta aberta a outros passos
Que por aqui deixem de ser passos
Como ondas que decidem
Rebentar na areia e voltar a ser o mar
Que aos nossos olhos se confunde com o céu

Não digas nada nem te queixes
É já tarde e já deixamos de ali estar
Tantas ruas já tomamos por estrada
Sem sequer pensar
Que podia ser a nossa rua
Como amnésicos seres que se esquecem
De quem são
E fazem de cada rua um labirinto
Vivo que a cada passo se tranforma
E nunca é igual duas vezes
Mas ali eles nasceram
E viveram toda uma vidaSem saber nem se lembrarem
Nem saberem porquê
E são desconhecidas essas ruas
Sendo estradas que só levam a elas mesmas

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A Estrada II

Sempre quis olhar para ti de frente
E dizer-te alguma coisa de interessante
Parecer o mundo e a atmosfera de um filme
Rodear-nos como uma nuvem de palavras
Que qualquer espectador presta atenção
E sentir os olhos do mundo em nós
A tentar escutar o que dizemos
E a sentir este aroma de café na sua boca

Estamos de passagem afinal
E tudo isto demora tão pouco
Que se abre em nós a expectativa
E fecha-se logo de seguida

Calma, tem calma meu amor
O som deste piano é efémero
Mas algo nos sussurra no silêncio
Que todo quanto ama é eterno

Assim, devagarinho, procuramos dizer
A nós mesmos, entredentes
Entre as vestes e as posses captadas
Que algo que nos suporta é maior
Que a força que mantemos nas pernas
E nos mantém na verticalidade
Olhando o horizonte como se este
Também traçasse uma linha vertical
Que liga a nossa estrada ao céu

E a nossa estrada escureceu
Nós ficamos a caminhar
Depois deste alcance de vitórias
Nas nossas palavras e olhares
Que estendemos um ao outro
Em amizade
E felizmente há um lugar ao fundo
Que nos inspira a confiança para entrar
E nós entramos sem perguntar
O que vai acontecer a seguir

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

A Rua III

A nossa rua nunca amanheceu tão tardiamente
Depois de se quebrar na face humana
A luz do sol já esbatida e sem sentido
E o nosso amanhecer ser feito
De um pôr do sol

Os teus braços longos estendem-se
Pelos lençois brancos às riscas
E as almofadas amortecem ainda o nosso sono
Sentimos simultaneamente força
Para nos levantarmos e para irmos
Tomar o pequeno almoço a uma rua mais aberta
E vermos o fim do sol e então rirmos
Com a lua que como nós desperta
E toma o seu pequeno almoço entre as estrelas
Olhando para nós e vendo-nos como amigos
Que ouvem todas as suas preces e a entendem
Nem que por vezes um copo vazio a desfoque
E as suas palavras pareçam um silêncio mudo
Só para alguns loucos decifrarem

Depois tu continuas trilhando passos
Escapando entre árvores e prédios
Os passeios são para ti pontes imensas
Que atravessam rios vazios de pessoas
Como a água transparentes e incolores
Que servem apenas de refresco e de lavagem
O teu olhar só se fixa na imensa margem
Onde nunca a nossa vontade nos levou
Mas a vida soube guiar-nos por acaso
A essa nova terra erigida depois da gente
Perdida e sem sentido ou harmonia
Para esta orquestra de metáforas que se estende
Para além de onde o nosso dedo aponta

Eu conto cada passo dado nesta rua
Eu meço-a com os meus pés a cada noite
Vivo aqui como quem está preso a algo
Que não é ele mesmo mas que o espelho
Sempre cego e iluminado diz que sim
E em cada diálogo o convence facilmente
Que o que palpa e o que sente não é nada
E que a imagem por quem morreu Narciso
Foi quem Narciso veio a ser
E não havia mais Narciso além desse
Nem Narciso o poderia conhecer

“Assim vou ficar triste” disseste tu
Que acreditas que o mundo não é complexo
E que a mão que te agarra a cada momento
Veio porque o universo lhe ordenou
E que a linguagem é também uma mão
Que também te acaricia ou te maltrata
Pelo que o universo andou a decidir
E tu tens razão, tu és razão
Tudo isto se estende além do que podemos definir
E copiando desta realidade as imagens
Podemos ver o rosto do universo
Sem que ele se intimide ou se aborreça
Só o tempo do relógio nunca pára
Todo o outro está parado e nunca mexe
Nem um ponteiro porque não os tem
E o círculo tanto faz o seu tamanho
Pode caber na palma da tua mão
Que a sua perfeita forma é a certeza
Que não precisa ser para ter a consciência total
De que existe.

Também eu queria ter consciência
E existir.
Perder o ser, deixar perder, poder partir
Da evidência
De não ter o rosto que tenho nesta rua
E de não precisar de deixar
Cair de mim mais um pedaço
Cada vez que sou e me transformo
Em algo novo que não este ser
Cuja forma se transforma
Só porque existe e tem consciência

Varri por completo a lucidez que restou
Daquela luz plena e perfeita
Que fez tanta vez reencarnar
Na pele desta sombra cálida
Um perfume nunca sentido pelas flores
Que se espalham como pessoas pelos campos
E que cada manhã se preparam
Nuas ao vento e à claridade e ao frio
Como quem vai trabalhar e não sabe porquê

A tua rua, a tua rua
Já não é minha, já a perdi
Deixei que me arrastasse o instinto
E fui sendo escoado como um pedaço de papel
Pelas àguas que escorrem dos telhados
E por cada gota que acaba por cair no chão
E assim fui despedaçado enfraquecido
Conhecer a paisagem que não me chamou
Mas que eu fui porque estava ali
E sem saber porquê deixei que se tornasse
O quadro de tantos dias e momentos
Acreditando que a fé na velocidade e na atenção
Que prestamos às imagens é maior
Que as memórias falíveis frágeis desconcertantes
Como um trauma de passado que voou
Mas a memória é a rua maior do nosso acordo
Com as imagens que frente aos olhos nos passam
Nós não sabemos apreender e percebê-las
Até que a memórias as filtre e as acaricie
Como é sua especialidade ancestral
Com a vontade de se tornar num mundo perdido
Afinal vivo e ainda activo continuamente
Naquilo que é a acção do mundo e se traduz
Numa linguagem universal e imperceptível
A qualquer um dos sentidos humanos perceptíveis

Mas tu estás sentada numa cadeira
Depois da porta entre a sombra
Que te envolve vinda da rua que amamos
E envolta em fumo eu não te percebo como antes
Há cinzeiros que se afirmam entre as paredes estreitas
E à espreita há um gato que eu não conheço
E nas camas só há memórias e roupa suja
Que ninguém se lembrou de lavar
O fogão não é mais que o contraste de uma memória
Saborosa de um aroma de uma partilha
De vozes e de conversas ao manjar
De cadeiras bancos mesas e balcões
Sofás cinzeiros e tapetes que nos envolviam
Cortinas abertas, cortinas fechadas
Um leve sinal de chuva que não havia
Mas que se pressentia como aqueles
Que tudo pressentem e sabem que acontece
Nem que seja no outro lado do mundo

Ou noutra profundidade ou nível se quiserem
E há histórias contadas sem moral
Conclusões nunca tiradas porque não acabou
Espaços abertos entre estas paredes e
O candeiro lá em cima é uma lâmpada
Distante e que só nos acompanha para ver
Rostos e centrar os movimentos dos que falam
Mas que não deixam ler nem uma linha deste livro
E há murmúrios ao meu ouvido a contarem
Motivos, razões, curiosidades
Sobre alguns motivos que se apresentam à nossa volta
E eu fico a pensar o memso e que isso
É pena mas não faz mal, já passou,
Sim já passou e agora é assim que ela é
Mas não importa porque foi atrás no tempo
E o universo nunca pára e só as portas fechadas
São portas realmente
Mais difícil seria construir o muro
Que só o tempo sabe moldar para que não caia

Descemos e passamos entre a gente
Batemos palmas
Estamos profundamente alegres
Ansiosos pelo resto que se aproxima
Depois continuamos e dizemos coisas
Que a ninguém interessam
Mas que todos ouvem e discutem atentamente
Abrem-se valas para a discussão ter mais interesse
Depois fecham-se e os olhares recusam
Os caracóis que se encostam na parede
E que brilham vagamente mas que a
Fotografia que tiramos na nossa mente
Nos vai ajudar a recordar como se um anjo
Os tivesse tocado
E toda ela parecia maior

Eu esperava-te mas não vinhas
E eu sabia isso mas esperava
Depois de tudo só esta rua é a tua
O resto são visões nunca decoradas
Dos passos que lá tivemos de dar
Para chegar a esta rua onde tu
Nunca chegaste a estar
Ao que parece não os deste e não deixaste
Que isso te preocupasse e eu fiquei
Triste um pouco às vezes mas igual
O mais belo deste mundo nunca tem
Nada de importante para nos dizer
Além de que é belo e que nós
Nada valemos

Tudo quanto é maior não muda nada
Nós somos tão pequenos
Que só o que é pequeno no universo
Nos faz sentir maiores
Daquilo que somos de facto.

A Estrada

Vagueei em liberdade tanto tempo
Que o suor das nossas mãos dadas
Não me convencem de que o tempo
Nada tem a ver com a forma como vivemos
Procuro entre o escuro palpar
A sombra deste aroma noctívago
Mas rezo a quantos deuses julgo haver
Pedindo que se cumpra a promessa
Que é amanhecer

Ressaltei de repente enquanto dormia
E sabia-te a meu lado
No meio de uma estrada perdida
Onde todos quanto passam não existem
Estão na transição da sua vida
Procuram exaustos a sua margem

Bebe um pouco de água meu amor
Agora eu sei que aqui tu estás
E que não foges nunca mais deste horizonte
E que levitar é o máximo que estas asas
Nos conseguem levar
Os nossos pés estão activos
E caminhamos por entre pedras e poeira
Tudo o resto que nos rodeia
Sabe quanto a nossa voz é verdadeira
As nuvens estão escurecidas
Mas é dia
E enquanto não chover vou abraçar
Toda a razão que se separou na onda breve
Conhecemos o mar, mas ele está longe
Mas por aqui há um caminhar que nos reforça
A alma que não se cansa de procurar
Um fim ou um início ou um amigo

Ganhei então esta vitória?
Venci por completo toda a vida?
Nada quanto vemos é a decidida
Versão que contará a nossa história
Por enquanto vamos especulando
Entre os passos que damos e que amamos
Por isso eles são belos e sem sentido
Além do sentido que lhe damos
E que tomamos pelo nosso decidido
Estar na vida, senhores do nosso destino

Não há vozes neste caminho
Que alguém decidiu para ser nosso
Será de muitos mais além de nós
Será dos pássaros que voam entre os ramos
E dos lagartos que vagueiam pela berma
Húmida e de musgo decorada
E ainda da chuva e do vento e do sol
E de tudo quanto é ou cria vida
E tudo que é implícito numa estrada
Que vais de aqui para algum lado
Diferente daquela rua solarenga
Que de noite se tansformava
No corredor sombrio de todo o universo
E do que não era conhecido nesse universo

Por isso nos perdemos neste dia
Em que encontramos um novo aroma
Daquilo que preenche o quadro
Perfeito e mutável da nossa realidade
Da nossa palpabilidade e da nossa vontade
De existir neste palco que não é.

domingo, 11 de novembro de 2007

A rua II

Foi depois da visão impraticável
Que tomei como certo os sentidos
E deixei a descoberto os gemidos
Da alma toda e incurável
Ficou toda a armação do nosso corpo
Como vestes que vendavais rasgaram
Num remoinho que todas as flores voaram
Por um caminho mal aberto

E fiquei só
De repente
A contar à luz do dia as paisagens
Que não se vêem na escuridão que mostra tudo
Do que somos interiormente
E passei a conhecer com os olhos
Aquilo que sabia de coração
Mas que nunca tive coragem de arriscar

Assim foi esta vida que encontrei
Junto à tua rua tão calma neste fim
Passando lentamente querendo ficar
Junto ao poste inclinado e sujo
Olhando a tua porta e imaginando
O som da tua voz a chamar
“Entra para dentro
Aí faz frio” e o teu olhar
A dizer a mesma coisa em relação
A tudo quanto chamamos psique

Na proporção das ideias imediatas
Vi, como quem passa a língua
Nos lábios, a ansiedade que sentia
De humedecer toda a atmosfera
Seca e lúcida da expectativa
Pesada e delineada
E de deixar cair nela, gota a gota,
O líquido que inunda sonhos
De quem ama e tem vontade
De voar por entre nuvens mais altas

Não sei o teu nome quando me olhas
Não sei como chamar esse ser
Que diante de mim se edifica
E se constrói de novo
E toda a água solidifica
Deixando toda a nossa sólida vontade
Transformar-se na matéria superior
Que é a divina e que não tocamos
Nunca com as mãos do nosso instinto
Procuro tactear-te na perfeição
Da lineariedade do tempo
Mas ele não se organiza nunca
Ele tem em ti inconstâncias
Que me faz acreditar que tu és tempo
Onde eu amo cada hora que não medida

Ouve-se a voz de um poeta
Entre a flecha do tempo que vagueia
Pela velocidade da luz dos carros
Que vão viajando pela rua transversal
Lá ao fundo, depois da inclinação
Natural deste declive

“composição: disposição

do fim da nossa viagem

rumo a algo em vão

pela visão pela miragem

e à parte, de lado, à margem

há a nossa mais pura revelação

a primeiríssima constatação

da tua presença”

E a tua voz quente diz que não
Que a vida não tem recompensa
Toda a gente é densa
Cada corpo pensa
E cada alma é intensa
E nenhum, nenhum tem nesta existência
Forma de escapar a essa razão que nos vive
Por dentro da concha que somos e que parece
Sempre a mesma, sozinha e desalinhada,
Com propósitos e direcções só compreendidas
Porque somos humanos e pensamos
Que existe sempre uma direcção
Um propósito e uma razão
E que o mundo é o depósito
Em que deixamos a nossa oração
E não há grandes deuses nestas paragens
Para além de nós e da nossa vontade
Os santuários são miragens
E quando lá chegamos não rezamos
A relegião sufoca o seu deus à medida
Que se compreende

É tudo uma corrente
Elo a elo ligado a cada elo
E cada elo da corrente
É sempre um elo menor
Da corrente que vemos
E achamos que tem fim
Mas é o elo de outra corrente
Que outros acham finita

Até o que é menor que nós
Nos é tão incompreendido como o que é maior
E o maior que nós
Nos é invisível tanto quanto o que é menor

Faz-se um silêncio essencial
Como nunca senti nesta rua
A tua casa está fechada
E tu não estás lá dentro
Vais algum dia voltar à mesma casa
Nem que seja para morrer?
Foi a tua casa que eu escolhi para morrer
Contigo.
Por isso não me abandones
Depois da escolha tomada com certeza
Com que tomei o meu destino
Neste fim de tudo quanto olho
Aparece pelo menos ao meu funeral
Onde já não te posso olhar
Mas onde te vejo agora a derramar
A tua única lágrima verdadeira

Silêncio inicial
Antes deste mundo ser escrito
E de alguém pensar que se pode escrever
Algo que já existe e não se sabe sequer
Onde começou ou onde acaba
Ou qual é sequer o meio que nos traz
Aqui onde este muro está escrito
“Não separes o corpo da paixão”
E nos deixa admirávelmente preplexos
Ao descobrir que nesta rua
Não vivemos só os dois
E que a tua porta faz barulho
Bata quem bata de madrugada
E que só tu vais saber sem saber como
Que mão foi essa que bateu
Como se contasses os segundos de cada toque
E o intervalo ritmado que eles têm
Contivesse o desejo que me contém

Abres a porta e cá estou eu
Tu sais comigo, temos pressa
Temos o mundo à nossa espera
E esta rua já está gasta
Pronta a ser gasta na memória
E passou apenas a ser o santuário
Dos seus momentos bem passados
Agora o mundo novo se recria
E há novos passos para dar noutro chão
Um ar novo que toma outras direcções
E que nunca sabe que caras vai iluminar
O sol que nasce a cada dia

A rua

Foi à entrada da tua porta
Da tua casa perto dos carros
Numa rua cheia de cores apagadas
Pela noite que deixa as lâmpadas dourar
Com uma luz que mal vê e tudo torna
Mais quente e reservado
E abre à imaginação uma outra dança
Que não se guia pelo amor a nenhuma melodia
Que eu me despi daquilo que eu procuro
Deixei para trás como quem esquece
Uma chave no cinzeiro e fecha a porta
E sabe que as janelas de hoje em dia
São altas de mais para quem é obrigado
A viver rente ao chão
Há gatos por todo lado mas pouco miam
Mas a tua mão sim me agarrou
E me disse tantas coisas que eu não sei
O que fiquei a pensar do tempo

Acho que a tua cara se virou
De uma forma nova e que deixou
Uma luz nunca antes vista iluminar
A tua alma.

Alma que deu rosto a esse olhar
Que me viu já tantas vezes nesta rua
Mas só agora eu soube entrar
Porque decifrei a senha secreta
Nunca guardada, não era dita aos meus ouvidos
Ela não se ouve com os ouvidos
Nem se vê com quaisquer olhos
E podemos tê-la feito sem sabermos
Quando dormimos entre os lençois
Ou quando olhamos pela janela
Para a rua a ver as pessoas a passar
No dia, brilhante, cheio de luz
Que faz qualquer pessoa imaginar conversas
E encontros perfeitos
Tão diferentes da realidade
Mas só possíveis de imaginar na realidade
E que só o nosso sentido torna impossíveis

Não se procuram os sentidos
Acham-se quando menos se espera
Nos suspiros que não esperamos que viessem
E que deixamos sair como quem fala
Esperando resposta do olhar que está tão perto

Ou de um beijo

Eu sei que se sentisse os teus lábios
Ia pensar menos e se calhar não pensar nada
Mas depois ia querer voltar
E talvez as ruas se desfizessem
Para eu me perder e ficar sozinho
Porque as pessoas nunca param
Raramente as pessoas param numa rua
Onde só moram pessoas
E onde não há montras nem cafés nem floristas
E esta rua onde as pessoas moram
Só moram, nunca vivem, dormem
Não me deixa sonhar mais do que imagino
E eu queria reinventar-te toda
Como quem pega em ti ao colo
E faz-te festas como se fosse possível adormecer
Antes de a noite chegar

Não há dias assim nas nossas vidas
Que não se comparem pelo menos a mil outros
Mas faz silencio, não faças nem um gesto, ouve
Tudo parece repertir-se
Olha em volta.
Não olhes para mim, olha em volta,
Tudo parece repetir-se mas há um odor
Que está perdido a cada passo que se dá
E não há uma pessoa igual a si mesma
Como sabemos que os passáros não cantam de noite
A não ser que sejam corvos que também são pássaros
Mas ninguém gosta de ouvir essa canção

Se te levantasses de vez em quando
Eu não corria o risco de ficar a contemplar-te
E dizer coisas que nem sequer chego a pensar
Saem tão velozmente da minha mente
Que não chegam a ser controladas pelo raciocíneo
De dizer uma coisa de cada vez e lentamente
Saem simplesmente e não se escondem
Como quem passa a correr rente a um muro
E não se dixa cumprimentar

Não sei se já comparaste esta vista
Com aquela que tens do horizonte
Nem sei se adormeces a pensar o infinito
E a contar o que anseias à almofada
Mas eu sei que tudo o que eu te disse
Fez com que me tenhas marcado nesse quadro
Que é o quadro que toda a gente tem numa parede
Onde estão as pessoas que ouvimos
E a quem julgamos ouvir quando sozinhos
Bebemos algo quente duma chávena.

Às vezes chove e a tristeza
Ainda é maior que esta que espreita
A cada esquina desta rua.
Esta rua, esta rua, está despida
E a cada palavra está mais nua
Mas há uma porta
E dentro dessa porta há mais portas
E uma delas é a tua, numa dela estás tu
Aí, estendida sobre os lençois
Que têm o meu cheiro e tu aproveitas
Para ti, mas ele vai desaparecer
E a lua vai também desaparecer
E nada dura sempre como devia
Nada está por aqui eternamente
E é graças a isso que existimos
Senão tudo era o seu silêncio inicial
E não havia olhos porque os olhos
Só nascem depois de morrer o nosso toque
E as mãos ganharem calos que não queremos

Isto que é a vida não foi nunca
A desculpa para nada que fazemos
Somos por nós maiores que o pouco
Que na realidade somos e só quando
Algo inesperado e sombrio acontece
Sentimos como insólita a verdade
Dos acontecimentos necessários e naturais
Que nunca a natureza descreveu
Mas que nos chocam e ofendem por demais
Nós que temos sensibilidade
E achamos que um abraço é maior
Que uma casa que termina no 4º andar

Abre a porta que eu não imagino
A tua face destronada da sua coroa
Eu quero toda a magia por acontecer
Não quero prometer-me mais que a vida
Não quero pedir-te para ficares parada
E não quero ir embora, que ainda é cedo
Abre a porta que eu não deixo o frio entrar
Enquanto eu passo e te peço para ficar
No teu sofá onde me enrrosco e onde procuro
Aquecer algo mais que os ossos e os sonhos
Algo novo que nunca antes foi comprado
Pelas pessoas que tudo conseguiram comprar.

Não foste tu que me pediste a minha boca
Nem mesmo eu sei descrever a minha força
Para transformar o universo num espaço
Onde já foram contados todos os segundos
Mas eu queria o teu braço à volta do meu pescoço
Eu tive esse sonho visionado
E nunca mais adormeci.

O chão sabe girar mais que este mundo
E as ruas não são rios, são só ruas
Onde às vezes corre a vida e as palavras
São sempre apreciadas como uma aragem
Que vem do fim da rua a perseguirnos
E a dizer-nos “Olá! Espera por mim
Eu vou contigo” e vem connosco ao longo
De todo este caminho.

Ainda está longe o fim
O dia em que se possa dizer que acabou
E que o sol não brilha nunca mais
E que as pessoas já não se enrroscam nos umbrais
Dizendo coisas belas ao pescoço
E afagando os cabelos lentamente
Como se procurassem o amor numa caixa
Quando estão só a tocar o laço de um presente
E não há volta a dar para trás
Tudo foi no seu perfeito seguimento
A existência de toda a realidade.

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