quarta-feira, 1 de novembro de 2006

O dia em que me esqueci de te escrever

Era um dia de sol, normal e inalterável, tudo estava mutilado pela calmaria impressionante que se instalava nesta mesma pastelaria em que agora, sentado, fumando e bebendo com a estranheza humana e só humanamente possível deste dia ser igual a todos os outros. Outrora, outra mesma estranheza se instalava entre mim enquanto ser ausente e verossímil por dentro e ser (não-ser) presente e impossível por fora. Toda a acção humana se derramava no meu olhar como raios de sangue nos meus olhos; cada pessoa na sua individualidade se erigia no meu olhar como uma cova funda em redor dos olhos de uma noite desperta. E eu fumava e esperava sem esperar, com a certeza de uma madrugada. As ventoinhas paradas, não arejanto nem o fumo nem os fumadores, o ar condicionado condicionadamente parado não condicionando nada... As vozes e os ruídos simultâneos de ideias e pensamentos e verdades e certezas imperceptíveis e distantes, e instantâneos, como um som de um automóvel (com a verdade total do tempo e do espaço) irracionalizável ao passar a 200km/h por um ouvido atento ao mais pequeno tempo num só espaço. Laranjas, vinhos, maioneses em vitrines que reflectem espaços mais iluminados. Os olhos de uma empregada atrás do balcão, mexendo as mãos com um automatismo impulsionado quase só pelo instinto.

É assim a verdade que se nos apresenta todos os dias, é esta a única realidade das coisas em nosso redor, é neste tipo de espaços e nesta ausência para o que entendemos ser “nós mesmos” que encontramos, lucidamente, a promessa de um início de um nosso ritmo que nos faça saltar daqui para o espaço em que algo que não vemos acontecer, algo maior que todas as pastelarias do mundo (algo mesmo maior que o mundo!), algo que divide o tempo em três, ligando-o, o que nos faz ser existindo e existir para o mundo.


Este dia em que me esqueci de te escrever, o “me” não era eu e o esquecer não foi meu, porque nem a mão era minha. Este dia que te descrevo agora é o único dia que foi meu porque eu não cheguei a ser mais que esse dia, e assim, maior que a pastelaria e o mundo esse dia transbordou do meu interior e foi preenchendo o meu exterior até ao horizonte. Quando fui a dar conta eu estava, eu era, eu cabia todo dentro do dia.

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