quinta-feira, 30 de junho de 2005

Óculos de Sol

Não gosto de relatar os factos que me acontecem, estilo um diário. Talvez por medo de me encontrar a mim próprio, não gosto de ser um narrador autodiegético, nem sequer gosto de ser um narrador, pois isso implica que eu fantasie, ou acabe por descrever parte da minha realidade, ou da realidade que capto, ou da forma como eu gostaria que ela fosse. Não gosto de ter contacto directo com o que analiso – isso repugna-me. Não vou fazer parte do que crio, ou da maneira como penso as coisas. Talvez achem que isto é cobardia, medo de seguir os meus instintos. Talvez. Mas isto é opção minha e só a mim diz respeito.
No entanto, desta vez, vou descrever a pura e integral realidade, e depois (e só depois) analisá-la.

Estou no Porto, no apartamento onde vou viver este ano, e muito provavelmente, tantos outros. Saí de casa para tomar um café, mas reparei antes que tinha deixado os óculos no carro. O que podia eu fazer se a minha mãe o levou? Como tinha de tomar café, pois um insustentável sono se apoderou do meu ser, fui até ao “Poeta”, sem qualquer instrumento que me protegesse da realidade. Náusea. Não tem outra espécie de nome. Uma náusea social em relação à realidade que me envolvia e me penetrava nos olhos desprotegidos. Enquanto o fumo fazia um esforço inútil para me distanciar, mais a realidade me atormentava. Sempre escrevi com poucas vírgulas e já o meu pensamento não as utiliza… Não havia espaço para eu pensar. Não havia virgulas, intervalos ou pausas. Todo o meu pensamento seguia e seguia. E eu ali completamente desprotegido, sem nenhum escudo, nem o meu pensamento que corria em auto-estrada, nas variantes de tonalidades vocais, olhares e conversas. Nada se me apegava, ao mesmo tempo que nada me preenchia a mente.
Saí.
Estava cada vez mais perto da razão porque, por exemplo, Fernando Pessoa criou os seus heterónimos. Não foi quando se encontrava sozinho em casa, ou quando o seu pensamento estava preenchido pela realidade que o rodeava. Não. Foi num momento em que nada se apegava ao seu pensamento, e no entanto nada o preenchia. Um vazio, um pensamento cheio de vazio na náusea social, num desencontrar entre si e o outro, criou alguém que não sendo ele nem outro que o rodeava, havia de ali estar para suportar toda aquela realidade na qual ele não estava dentro nem fora. De fora, ele manuseava os seus heterónimos como um fantoche que numa mesa de café, tem a mente suficientemente sólida para conseguir reagir ao ambiente social. Ele não criou nenhum heterónimo, eles simplesmente apareciam onde não estavam e deviam estar, e Pessoa imaginava o que eles pensavam, mesmo não existindo. E já que eles não existiam, cabiam dentro dele.
Tudo começou então num decorrer de pensamento «auto-estrada» sem vírgulas, suficientemente longo que para a realidade ser suportável, era necessário criar alguém mais, para suportar o peso dessa realidade tão gritante.
Se Fernando Pessoa usasse óculos de sol, ele seria apenas Fernando Pessoa.

quinta-feira, 2 de junho de 2005

Os Seios

Os Seios não são um lugar,
Nem tampouco um subterfúgio
Das horas enferrujadas pelo mar
Dos que vivem sem refúgio.

Carregam na cabeça o peso de sentir,
Os olhos em ameaça, os lábios a sorrir.
Vêem no vazio um peso diferente
E são livres de esvaziar a mente.

Olham horizontes sem ver,
Encontram-se em qualquer gesto,
Filhos sem dó nem rosto,
Por quem os deixou a morrer.

Abrem sempre conversa
Com som e silêncio à mistura,
Orquestram palavras de amargura,
No desespero da alma perversa.

Os Seios do amor e do ódio,
Frágil descompostura que o repúdio,
Ora chama, ora incendeia,
Junta os Deuses no seu concílio,
Aprisiona o resto na teia.

Escrivãs de escritas vãs do que é Fado,
Almas sãs, corpos imundos de pecado.
Armada atenta ao afrontar áspero
Da fronteira entre a mão e o outro lado.
E quem seria Homero?

Os Seios entre o ir e o voltar,
Entrincheirados na razão e na mão
Dos corpos enferrujados pelo mar,
Dos que vivem pelo coração.

Contam horas e minutos,
Segundos e batimentos do amar,
O que é coração para muitos
Para outros são corpos a balançar.
E o que irão alcançar?
E o que irão encontrar?
As nossas mãos e o nosso gesto?
A nossa mente e o nosso resto?
O nosso corpo e o nosso rosto?
Serão forças estas linhas,
Que escrevo como quem caminha
Fora da sombra da razão,
Fora da hora habitual,
Este corpo que mora no chão,
Tem asas para outro local?

Mas não são lugar Os Seios,
Não são se não o que são:
Segundos de embriagado receio
Que nos prende a alma ao chão
E nos ferra no corpo o seu freio.

Foge a alma e leva o corpo,
Para onde tu fores eu vou,
Estar perdido é estar morto,
Que é um não estar do que sou.

Os dois pólos que não se atraem
Como dois amantes que se traem,
Mas os mesmos pólos se aproximam
No ciúme dos amantes que sibilam.
Ó meu deus que paradoxo,
Onde deixamos nós a harmonia
Que destes à pomba ou ao mocho,
Porque vacilamos entre a melancolia,
E a alegria? Porque nos despojaste assim
Na floresta sórdida do principio e do fim.

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